sexta-feira, 18 de setembro de 2009

A profecia da terra


Sou a memória dos que não foram e que, por algum motivo, hoje se permitiu ser. Tolice de quem não acredita no que os seus olhos negam ser ou existir, ainda que já percebido.
Vou contar uma história que vocês já conhecem, mas de uma forma “diferente”. Fazia sol e abril anunciava o vigor do outono que se desenhava mais belo que a primavera européia, eu não estava lá, mas eu vi.
E nesse mesmo dia de abril “nomearam” a Ilha de Vera Cruz. De lá pra cá mudaram seu nome várias vezes até que decidiram chamá-la de Brasil, acho que agora é definitivo. E assim como nomearam a terra, nomearam as águas, as plantas, os animais, e tudo mais o que se pôde nomear. Dentre os animais nomearam alguns de “índios”. Estes se assemelhavam aos próprios portugueses, no entanto, vestiam-se “diferente”, ou melhor, pintavam-se “diferente”, falavam “diferente”, agiam “diferente”, afinal, não eram portugueses, logo, tinham seus próprios hábitos. Mas os portugueses acharam que essa diferença fazia desses animais seres inferiores, então decidiram escravizá-los para usufruir de seu trabalho e sua riqueza. No entanto, esses animais reagiram e resistiram.
Apesar de toda aquela “diferença”, não estavam acostumados a trabalhar para outros animais e a serem violentados de formas tão diversas sem saber o porquê. Com o tempo, os portugueses e a sua inteligência humana, ajudados por uma revelação divina, consentiram que aqueles animais possuíssem alma, e viram que existia algo em comum entre eles e os “novos humanos”. Agora, ambos dotados de alma, precisavam interagir para que “os novos humanos do novo mundo” fossem salvos.
Iniciou-se um longo, doloroso e violento processo de civilização, afinal, os portugueses precisavam salvar aquelas almas trazidas de presente da Europa, e elas não poderiam permanecer em um patamar tão inferior, deram-lhes então, além da alma, é claro, uma nova religião, uma nova língua, uma nova fé e aos poucos foram “civilizando” esses seres, ajudando-os a evoluir e a se purificar. E nesse processo de purificação eles iniciaram uma faxina, e limparam com suor, lágrima e sangue várias vidas, limparam as pinturas, limparam as crenças, limparam os dialetos.
E os índios continuavam a reagir, agora, dotados de alma e a um passo da (alfabetização) civilização, começaram a aprender os nomes que os, agora “irmãos”, portugueses davam às suas engenhocas, aos seus sentimentos, ou à falta deles, aos seus mortos, aos seus vivos, às suas escrituras, ao seu governo, à sua nação, às suas terras, e, aos poucos, foram preenchendo o grande vazio deixado pela “limpeza” promovida em prol da sua excelência pedagógica.
No entanto, alguma coisa resistia a esse processo de limpeza e deixava uma marca forte e escura: Visível. E essa marca era muito difícil de remover, acredito que vinha da terra. E aquela terra também escura tinha algo mágico que até hoje não consegui desvendar. Hoje me dizem que aquelas terras são da União, que essas são de particulares, mas os índios pareciam não entender de quem era a terra, pois eles é que pertenciam à terra, e não o inverso; eles precisavam da terra para sobreviver, e não a terra que precisava deles.
Precisavam também entender o que estava acontecendo, aquela gente estranha e violenta que chegara com ar superior. O fato é que entre armas e espelhos, necessitavam agora de novas curas para novas doenças, de novos espaços para novas atividades, de novo vocabulário, de um novo deus que lhes substituíssem os seus deuses. Mas nada era mais necessário que a velha vontade de reagir. E reagiram. E em meio a tantas necessidades, necessitou-se aprender erroneamente o conceito de justiça, não essa justiça da qual falamos hoje, mas a justiça que dava nome às guerras justas. E então, seria melhor não ser justo. E não foram.
Já dotados de alma e palavras, os índios precisavam também de um ofício, e não faltou quem viesse ensinar; os portugueses se achavam bons professores, mas perceberam tarde demais que erraram no método. Diziam que os índios eram preguiçosos, indolentes, e até agressivos, mas eles só estavam praticando a lição de casa. Os jesuítas viriam corrigir a tarefa, mas como os índios não correspondiam à metodologia daquela escola, resolveram então chamá-los de incapazes. E assim passaram a “protegê-los” e “ajudá-los” a se integrar na sociedade. Criaram leis, órgãos, delimitaram as terras, fizeram de tudo, mas os índios ingratos não se agradaram. E reagiram.
Não iriam deixar roubar-lhes a identidade, não iriam. Não eram portugueses, não queriam ser portugueses; não eram índios, não queriam ser índios; não tinham alma, não queriam ter alma; não eram civilizados, não queriam ser civilizados; mas também não eram folclore, não queriam ser folclore. Eram reais, queriam ser reais, e lutaram por essa realidade. Queriam cantar, lutar, manifestar-se através da sua língua, seus costumes, seus deuses. Queriam apenas ser o que eram antes dos intrusos chegarem. E regiram.
Depois de tanto tempo, tanta luta, questionar se o mito do bom (e do mau) selvagem ruiu é uma tarefa coletiva, mas antes de tudo individual. Será que esses preconceitos vão ruir? Ou será que os homens vão insistir em continuar nomeando outras formas de preconceito... De quem são essas terras afinal? Rousseau estava certo ao falar da ingenuidade daqueles que aceitaram o fincar das estacas que cercaram o primeiro terreno? O quão ingênuos foram e são os que aceitaram e aceitam esses cercamentos? Quem e o que legitima esse poder?
Dizem que no Brasil tem terra para todos. Também existe comida para todos e muitos ainda morrem de fome. Entender essa lógica demanda a crueldade mínima de quem já vivenciou a lógica capitalista. E os índios estavam acostumados a uma vivência bem “diferente”.
Apresenta-se difícil demonstrar o que vocês não viram. Histórias tão cruéis contadas assim parecem literatura, mas não são. Conseguir expressar melhor como eles resistiram, explicar de onde vinha tanta força... Ainda acho realmente que existe um mistério que não serei capaz de desmistificar, mas acredito que venha da terra, não essa terra que o homem marca e diz ser de alguém, mas a terra capaz de sentimentos, sim, capaz de sentimentos. Dá vida às árvores de troncos fortes, que dão o fruto que alimenta; sustenta as águas e todos esses prédios grandes e pesados; recebe a chuva que se precipita do céu; acolhe qualquer corpo que se estira cansado ao chão sem querer nada em troca. Terra que é terra não porque a nomearam assim, mas porque ela se faz assim e requer o mínimo de cuidado, não pela mesquinhez da troca pelo que ela dá, ao contrário, pelo que se sabe que ela não faz questão de receber. Da terra onde eu me ergo e grito e eu sei que a terra me escuta, presente nas transformações que se dão com o tempo. Tempo, tempo, tempo, tempo... Ciclo natural de construção e desconstrução do que é tangível ou imaterial. Sei que tocou as vozes dos que hora silenciados hoje se fazem ouvir. E sei que também tocou com sensibilidade e luta os ouvidos dos que não quiseram escutar e até mesmo dos que quiseram silenciar. E o que “nesse momento se revelará aos povos, surpreenderá a todos, não por ser exótico. Mas pelo fato de poder ter sempre estado oculto quando terá sido o óbvio”. O que é o tempo senão a percepção da mudança. Muita coisa mudou e muita coisa ainda vai mudar. E eu verei. Sou a memória dos que são, mesmo quando não queridos. Tolice de quem não acredita no que seus olhos negam ser ou existir, ainda que já percebido. Questionem, reajam.


(Ana Míria Carinhanha)