terça-feira, 5 de julho de 2016

Deus de quintal II

Lá estão os deuses me sorrindo
Nas tardes de domingo no quintal da casa da minha avó
Descascando laranja,
Colocando o pequi para secar ao sol,
Alimentando as galinhas
Tirando os bichos de porco das pontas dos dedos.

Reconhecia a divindade nas piadas infantis do meu avô
No cachorro que corria atrás do sarigué e sangrava-o até a morte
Nas mangueiras, goiabeiras, cafezais
Em Judith, cágado de passo lento, firme e certeiro
Que morava debaixo da sombra do abacateiro

O fundo da casa da minha avó não era um quintal,
Não era só um jardim, era mais que um terreiro
Era onde Deus morava e brincava com a gente
Caçava minhocas e borboletas
Brincava de pique esconde, subia em árvore, corria
E caia

Éramos felizes
Éramos deuses
E ninguém precisava acreditar em nada disso
Porque minha avó sempre saia na porta batendo o pilão e gritando:
Olha a merenda!

Deus de quintal I

Se Deus ou Deuses existem e podem nos ver
Se ele ou eles tem algum plano ou desejo para/por nós
Não sei dizer se estão contentes
Mas acredito que se divirtam
Pelo menos comigo.

É curioso pensar que nos movem o medo e o suborno
Do inferno ao céu e vice versa
Tendo a morte como intermédio
Nos ensinam do jeito mais vil a ética utilitária
Metafísica da fé

Em nome desta nos animalizaram,
escravizaram,
almatizaram,
embranqueceram,
corromperam, deterioraram...

De que me serve uma fé não genuína?
As promessas incertas, boas e ruins, paralisam, iludem.
Movimentam como onda que aterrissa na areia
e se esparrama sem saber para onde...
Se é gota que penetra o solo,
Ou se é gota que volta para o mar.

Entre o ir e o ficar...
Na dúvida, é-vapor-ar
Tomo os céus
Tenho sedes de horizontes
Que me queimam ao cair dar tardes
Ou me molham com as neblinas da madrugada

Se existe um Deus ou deuses,
Certamente habitam os ares
E passam temporadas com as avós gordas, negras e de bem com a vida
Brincando com as crianças nos quintais do interior da Bahia.

quarta-feira, 25 de maio de 2016

Crônicas do Rio - Enquanto eles se batem dê um rolê!

Da dor que me dói só quero o estrago,
O fim da cena,
O assalto

Afaste o medo,
A arma em punho,
O sangue

Leve o sereno,
O frio, o silêncio, o corte
Deixe apenas a morte

Era madrugada, as crianças se revezavam no quebra-molas improvisado no início da rua. Corre, grita, apita. Tudo muito natural para quem tudo ali era estranho. O carro preto desce as ruas estreitas e sinuosas da favela. Um homem sai correndo do bar e grita. Insistentemente, grita. Walk toques anunciam nossa descida. A cada curva é mais nítida a sensação que estamos sendo esperados. Esperadas. Na quarta curva, com a pistola em punho, nos para o cidadão. - Desce do carro -, Fala para o motorista. Espero aflita a execução que não se dá. O primeiro tiro seguido de muitos. A primeira respiração seguida da apneia. Tudo em suspenso no campo das ideias. O homem armado corre ao lado do carro e grita "tranquilo". Depois de ter nos feito jurar que não havia "nada" conosco no veículo e nos questionar se tínhamos "certeza", nos promete uma recepção com fuzis e metralhadoras. Noite confusa. Apreensivos, reféns assegurados pelo cidadão armado que grita enquanto corre ao lado do carro, éramos nós e a sensação precisa de ser um peixe de rio fora do aquário. "Tranquilo, tranquilo...", As luzes da cidade logo nos iriam relembrar que não era nada daquilo, ou que era tudo mais do mesmo!