quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Qual desses m(e/i)ninos você quer criar?


Minino correndo para o meio do mato.
Minino cansado, minino assutado.
Minino saindo pela beira do asfalto.
Minino cheirando, minino fumando.

Minino trocando os livros e as bolas de gude.
Quantas diferenças entre tantos mininos.
E qual desses mininos você quer criar?

Minino correndo, minino no meio da rua.
Minino no meio da chuva.
Minino cansado, minino sem prato.
Minino sem trato, mininos do tráfico.

Minino do canto, minino sem tanto.
Minino enconstando.
Minino do pântano, menino empantanado.

Minino jogado, minino invisível.
Minino temível, minino inventado.
Quantas diferenças entre tantos mininos.
E qual desses meninos você quer criar?

Minino de bunda de fora.
Mas minino o que eu faço agora.
Se não tenho mais nenhum trocado pra te dar.

E o que eu faço se não quero
Minino na minha porta, minino na minha calçada.
Mas minino, eu não te coloquei aí,
Menino, só quero te ver sorrir.

Mas, minino, o que você não pode ver.
É que nós não queremos te enxergar.

Minino cansado, minino doente no meio da rua.
Minino de bunda de fora.
Minino correndo na beira do asfalto.
Minino correndo para o meio do mato.

Mininos cansados, mininos fardados,
Mininos do tráfico.
Mininos, futuros perdidos.
Passos cumpridos e desperdiçados.

E todos seguem o ciclo dos mininos
Desadotados.

Menino teimoso,
Menino, onde está o seu sapato?
Menino tira o dedo da boca, tira esses pés do chão gelado,
Pode pegar um resfriado!

Menino troca de calção que esse está furado.
Menino vou te dar um castigo se desligar o computador errado.
Menino tira o dedo da tomada que você pode levar um choque.

Minino sai da beira do asfalto,
tá correndo perigo de morte.

Meninos, mininos...

M(e/i)ninos que apanham, m(e/i)ninos que batem.
M(e/i)ninos que comem, m(e/i)ninos que se escondem.
M(e/i)ninos que cedem, m(e/i)ninos que pedem.
M(e/i)ninos que cheiram, m(e/i)ninos que fumam.

Meninos que deitam, meninos que estudam.
Meninos, roguem pelos mininos.
Meninos, olhem pelos mininos.

Meninos, mininos...

Quantas diferenças entre tantos m(e/i)ninos
E qual desses m(e/i)ninos você quer criar?


Minino jogado, minino invisível.

Minino temível, minino inventado.
Quantas diferenças entre tantos mininos.
E qual desses m(e/i)ninos você quer criar?

Mas minino, eu não te coloquei aí,

Menino, só quero te ver sorrir.
Mas, minino, o que você não pode ver.
É que nós não queremos te enxergar.

Mininos, futuros perdidos.

Passos cumpridos e desperdiçados.
E todos seguem o ciclo dos mininos
Desadotados.

Meninos, roguem pelos mininos.

Meninos, olhem pelos mininos.


Meninos, mininos...

Quantas diferenças entre tantos m(e/i)ninos

E qual desses m(e/i)ninos você quer criar?




Ana Míria Carinhanha

Perecimento sutil.

Quando os hábitos tornam-se maiores que os sonhos a morte torna-se uma dádiva.

Vou indo...

Como você vai
Sair do ambiente comum e rotulado
Superar o hábito e os clichês
Ir em busca de novos horizontes
Explorar o inusitado
Experimentar o novo

...?
Passos muito importantes para atingir qualquer objetivo não alheio
Ou seja, seu.
Contudo é necessário um alicerce
Que lhe dê suporte e força para o arranque

Para toda corrida existe o primeiro passo.
E a aceleração se dá progressivamente.
Todo macaco velho um dia foi inexperiente.
E só assim se chega a algum lugar: partindo de um ponto de origem.
A inércia é responsável pelo desenrolar da trajetória.
Ainda que seja no seu início.

Métodos de deslocamento
Variação de velocidade
Impulso
Combustível
Companhia para quebrar a resistência do vento
Sonhos

No começo.
Na tomada da decisão.
Pelo gerúndio pelos ventos
Vou indo...

Os passos, a corrida, o vôo.

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Reflexo

Fiz uma ruma de verso e preguei na geladeira
Ninguém entendeu nada
Não aumentou a quantidade de comida
Mas agora a garrafa de água lá dentro está sempre cheia...

Me diz o que você faria?

O livro de direito penal ao lado do livro de poesia
Que ironia...
O baseado escondido da mãe atrás da sua fotografia
Que hipocrisia...
O julgamento do colega que sofre por um amor perdido
Que heresia...
Me diz, me diz: o que você faria?

terça-feira, 28 de setembro de 2010

Do buraco do meu casaco

Casulo de sonhos a espera de uma bunda quentinha que os possa chocar.
Resolvi ouvir seu conselho, pró.
Comecei...
Do buraco do meu casaco retirei uma caneta preta.

Do bolso sujo e surrado
brotaram palavras mágicas.
Juntam-se lado a lado
e contam histórias fantásticas.

Gosto de lê-las.
Mas gosto mais quando os outros também gostam.
E resolvem fazer buracos nos bolsos dos seus casacos
Para retirar palavras mágicas de lá também

Livros esquecidos,
Caixas de giz de cera,
Guardanapos de butecos.
E os retornos de som, potentes, que ecoam na minha mente.

Do bolso furado do meu casaco
retiro um pouco de carinho
tristeza, prazer e cansaço 
E publico aqui no meu cantinho.

Por esse grande novelo de sentidos 
Muitos nos julgarão patéticos.
Mas não importa. São muitos tecidos. Jeans, lã, algodão... 
Tecendo um cotidiano mais poético. 

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Behind...

"You don't know me
Bet you'll never get to know me
You don't know me at all
Feel so lonely
The world is spinning round slowly
There's nothing you can show me
From behind the wall
Show me from behind the wall" (Caetano Veloso)



bugudun...

Êta mania de exclusividade que me tira o juízo.
Não vê que a vida não é assim.
São muitas janelas.
Demanda demais pra mim.

Escuto a rádio que você me indica.
E além de comentar a música
Tenho que responder rápido
Senão o conflito é certo.

Acalma esse coração,
Melhor, acalma as suas mãos.
Os dedos no teclado.
Adequa-se ao tempo da conexão.

Ainda sobre as estações.

Passarinho quer cantar além do bico,
anunciar a primavera...
Seu José está no bar molhando o bico,
também cantando a prima Vera.

Minutos peculiares de um dia quase comum.

Era mais maluco do que eu pensava, muito mais. 

Nunca ia imaginar que aquele homem sério, compenetrado e com pinta de músico tinha tantas histórias para contar, muitas delas, invenções, creio eu. 

Essa minha mania de conversar com estranhos ainda vai me gerar grandes problemas. 

Eu só queria vê-lo tocar uma música na viola...

Depois de borrifar em mim um perfume artesanal em que misturara gasolina e a essência de uma formiga enorme que ainda mantinha no frasco; dizer que ficava dias sem tomar banho, e que no sul esse era um dos motivos para os homens adoecerem em decorrência do catupiry da gola rolê; contar sobre o seu passado de aviador e da sua plantação de ayahuasca; oferecer insistentemente chá-mate em uma garrafa térmica encardida e pão com mortadela em uma sacola de supermercado; escarrar na grama; falar de suas experiências eróticas com as sobrinhas, e do seu hidratante/lubrificante mais potente que o KY, e feito com óleos animais; procurar um diapasão em meio a um short de banho e algumas roupas que trazia na mochila; de comer uma trufa (e sua embalagem) amassada; falar sobre a sua família; dizer que ia sortear uma capa de almofada artesanal que ele conseguiu na etiópia; me oferecer uma burca; mostrar fotos da família, da burca, e uma camisa pintada com referências ao museu de arte moderna da Bahia e ao por-do-sol;  falar mil vezes (ou mais) que estava morrendo de sono e a dias sem dormir; contar que tinham roubado a sua bicicleta e o seu violão; mostrar a estampa bonita do pano com o qual se cobria quando sentia frio; narrar da desventura de um amigo que estava brigado com a mulher porque ela descobriu que ele (o marido) havia desmontado o seu microondas para trazer uma pistola contrabandeada do exterior para o Brasil; ele ainda conseguiu tocar um axé em ritmo de blues com uma viola desafinada e sem uma corda. Além disso me deu altas dicas de afinação e recomendou Almir Sater. É um fã deveras excêntrico.

Pelo menos tocou. Em determinado momento achei que ele não sabia. Mas aí já não era preciso saber. Aquelas histórias eram muito mais difíceis de serem contadas do que tocar viola. E mais, com a mesma viola desafinada e sem uma corda ele tocou "Bem te vi" em ritmo de afro-baião-oriental numa pegada de funk romântico somado ao seu estilo Bob Dylan de cantar. Parece impossível, né? Mas foi bem isso!

Se não acreditou, não tem problema. "Tudo vale a pena quando a alma não é pequena".

De fato, a vida é curta. Mas nela acontecem coisas que até quem viveu duvida.  

Eu vi aquelas mãos mudarem de cor

Aquelas mãos se amaram
Em movimentos suaves e sugestivos.
Nunca imaginaria tamanha expressividade  em uma dezena de dedos.
Multiplicavam-se no ar.
Desenhavam sentidos.
Insinuavam posições.

Quem diria,
Alguns dedos...
Tinham uma poética singular.
Olhava-os procurando entender a magia.
Mas não conseguia.
Existia algo ali que não conseguiria explicar.

Entrelaçavam-se para além da soma dos corpos.
Encarnavam divindades.
Na tela da TV os tons de azul embaçavam mais a visão.
As pálpebras cerradas procurando distinguir o real e a ficção.
E confundindo mais ainda o amontoar de corpos no colchão
Acordei assustada, era madrugada...

Apalpei ao meu redor na cama.
Estava vazia?
Sonho. Ou pesadelo...
Olhei as palmas das mãos como quem procura o coelho na cartola.
Cor de carne.
Na seqüência: o prazer e a frustração.

O vestido preto e os pés sujos de areia.
Na frente, o tortuoso caminho de casa.
O dia insistia em brilhar do lado de fora da janela.
Cortinas fechadas para evitar a luz, teimosa luz.
Invadia o quarto desesperada.
E eu ali deitada.

O dia seria longo.
Precisava descansar.
Mas os sonhos malucos
Insistiam em me atormentar.
A garrafa de licor já estava no fim.
E aqueles poucos goles que restavam foram suficientes pra mim.

Dormi como um anjo.
A boca e a tosse secas incomodaram um pouco.
Muito menos do que aquele sonho louco, é verdade.
Mas o que mais me atormentou aquela noite
Não foram os dedos, nem a areia, nem o vestido, nem a ressaca.
Foram os resquícios de realidade.

Procurava um álibi. 
Mas tudo era denúncia em potencial.
Bem que alguém poderia ter gritado. 
Para que eu pudesse ter acordado.
Sem medo do julgamento
Do amanhã que seria fatal . 

Como poderia me olhar no espelho 
E encarar a covardia 
De quem viu a dança das mãos 
Entrelaçadas no mesmo ritmo 
Do frenesi que anunciava a traição.
Corre, corre, pega ladrão. 

A buzina dos carros começava a incomodar mais que a claridade. 
Ledo engano, dura realidade.  
Precisava mesmo levantar
Dormindo e acordando tanto. 
Sem nem conseguir distinguir o riso e o pranto. 
Corri sem rumo pela cidade, mas não conseguia chegar.

Acho que ainda não consegui. Nem vou... (ainda é incerto o onde)
Mirar as mãos esperando que mudem de cor é habitual.
Mal sinal. 
De fato, isso tudo não é normal. 
Nem a ressaca, nem os dedos, nem a areia, nem o vestido. 
Fazem parte disso que chamamos de vida: loucura banal.


sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Candeeiro da saudade

Retrato do meu eu
Onde você se perdeu?
Agora além de sós
Estamos nus...

Sem moldura,
Sem brinquedo.
Sou eu e os meus medos
procurando religião.

Posso seguir-te?
Ajuda-me a me esconder.
Agora é noite e já faz frio.
E é escura a solidão.

A saudade ainda arde.
Queima incandescente.
Corrói os pilares da juventude,
Essa paixão inconsequente.

Muitas vozes nos corredores.
Na mente dos anciãos.
Relembrando o samba-enredo
Da última estação.

Ainda lembro aquele tempo
Em que via você dormir
Feito criança eu olhava
Com medo de você partir.

Acordei e era tarde.
Saiu para trabalhar.
Maldito sono covarde.
Ainda estou a te esperar...

Nas cirandas das lembranças
Começo a me atrapalhar
Entre os sonhos e as esperanças
De um dia você voltar...

Quando enfim morrendo de medo
Já não há tantos segredos
Não preciso me esconder
Só preciso de você.

terça-feira, 21 de setembro de 2010

Manobras arriscadas

O que fazer para voltar atrás quando não se pode mais.
Se pedir perdão já não cura as feridas.
Baixar a cabeça e olhar para o chão
parece ser a única solução.

Perdão, perdão, perdão...
A minha falta de lucidez,
A minha falta de razão.

O perigo das manobras arriscadas vai além do que se imagina.

Verter lágrimas não adianta mais,
Maluquice desesperada, vontade de voltar atrás.

Perdão, perdão, perdão
O tombo foi impensado.
O levantar menos ainda.

Perdi o sentido das ações,
o controle das emoções.
No chão me resignifico.

Novas lesões, novos traumas.
Nova vontade de recomeço,
Do velho corpo machucado.

domingo, 19 de setembro de 2010

Você tem fome de quê?

- Boa noite! Desculpe incomodar, mas eu sou aidético e estou com fome. Aceita uma bijuteria por um ouvido?

Poderia tranquilamente ter sido um alto executivo, um empresário de sucesso, um catedrático, mas me abordou tentando trocar algumas bijuterias por um prato de comida. Extremamente inteligente, articulava bem as idéias, possuía bom vocabulário. Como teria chegado a esse estágio?

Explicou-se dizendo que havia limpado um terreno e em troca recebeu um lugar para construir um quartinho, morava na rua. Disse também que era aidético, que estava fazendo um curso de bijuterias e que havia comprado uma cera para fazer uma depilação e que por isso estava sem dinheiro. Ofereceu-me então uma bijuteria em troca de comida. Disse que eu não precisava dar-lhe o dinheiro, que poderia comprar a comida e entregar a ele, porque estava mesmo era com fome.

Lembro-me de como me abordou. O excesso de zelo, as desculpas por estar incomodando. A sua magreza e a aparência surrada se incumbiam de delegar a ele o papel de coitado.

(“Triste Bahia, ó quão dessemelhante...”)

Dei-lhe o dinheiro.

Ao se despedir perguntei a ele se sabia o que era uma monografia e respondeu que sim. Eu disse que estava fazendo uma e que gostaria de fazer a ele algumas perguntas, e disse que se não quisesse ele não precisava me responder. Pela primeira vez na conversa ele me atropelou balançando a cabeça afirmativamente e disse: sei, você está fazendo uma pesquisa com soropositivos.

Para a sua surpresa respondi que não. Que queria fazer três perguntas. Ele tomou a liberdade de puxar uma cadeira e sentar-se “conosco” (a uma distância que ele considerava não invasiva). Pensei: já deve ter sido entrevistado umas mil vezes por conta do HIV. Perguntei sobre a justiça e prontamente ele me respondeu: NÃO EXISTE! Não existe justiça terrena porque essa você compra...

E seguiu explicando. Perguntei-lhe sobre o direito e com a mesma convicção me respondeu que esses (os direitos) têm que ser batalhados, que por si só não existem, e contou-me que sempre ia dormir na fila do “seguro desemprego” porque só distribuíam cinqüenta senhas e se chegasse lá pela manhã encontraria mais de trezentas pessoas na fila. Sabia que o seguro desemprego era um direito seu, mas, sabia mais ainda como se dava o enfrentamento com a polícia quando esta ia retirá-lo da fila.

Aquilo acabou me chocando e a minha pequenez se contentou com o que ele já havia narrado. Agradecia quando ele me interrompeu pela segunda vez e disse que eu só tinha feito duas perguntas, que faltava a terceira. Espantou-me a atenção dele. E fiz a terceira pergunta; sobre as pessoas que "lhe davam" com o direito: juízes, promotores, professores, estudantes, civis... e respondeu-me: eles abusam, e seguiu falando desse abuso de uma forma leve, sem rancor, mas consciente, falou-me dos salários, mas não questionou a necessidade do judiciário.

Achei que fosse me falar de corrupção, poder, essas coisas que todos falam. Mas preferiu falar sobre a cara de nojo que as pessoas faziam quando ele as abordava na rua de um modo geral. Reclamou que as pessoas não gostam nem de ouvir, disse que já havia sido maltratado ao tentar pegar um ônibus para ir buscar remédio em um hospital distante, e seguiu contando-nos algumas das suas muitas desgraças. Quis interrompê-lo, não por frescura, não pelo nojo do qual ele falava, mas por ele, por sua intimidade, na tentativa de preservá-lo. Eu e minhas perguntas falsamente impessoais e sobrecarregadas de subjetividade fomos o gatilho para disparar naquele homem uma verborréia intensa de quem precisa mais intensamente ainda de um ouvido.

Será que ele contava essas histórias quantas vezes por dia? E no dia seguinte, quantas pessoas se lembrariam dele, da sua história, daquele dia em que foram abordados com a finalidade de trocar uma bijuteria por um prato de comida. Certamente ninguém ou quase ninguém, porque pelo que me relatava, a maioria o ignorava e alguns davam logo o dinheiro para se livrar; outros aceitavam a troca.

O humor do homem começava a me incomodar. Falava de suas desgraças sorrindo, melhor, gargalhando. Sentir-me-ia tranquilamente em um “stand up comedy” se ao invés de estar sentada na calçada de um bar conversando com um mendigo eu estivesse assistindo homens de smoking no teatro.

Numa dessas, ele falou que não podia comer bolacha recheada, mas que estava com fome e ofereceu uma bijuteria por comida na porta de um supermercado e a mulher deu a ele um pacote de bolacha recheada e coca-cola.

- Eu não ia ficar olhando pra eles e dizendo: como vocês ficam bonitinhos aí e eu aqui. Então eu nham, nham, nham, nham... botei pra dentro.

O sotaque afeminado contribuía intencionalmente para o humor da desgraça.

Em pensar que há pouco falava com uma das amigas que estavam na mesa que eu estava pensando em escrever sobre a pedagogia da miséria... (mas isso fica para uma outra conversa).

Como ia me dizendo, não podia comer biscoito recheado. E estava andando pelo corredor da vitória, lugar nobre de Salvador onde não tem banheiros públicos, e segundo ele também não tinha um matinho ou uma construção em que ele pudesse se esconder.

Seguiu andando até onde pôde. Levantou para tornar mais real a sua história e se imitou ao mostrar como andava quando já não agüentava o desastre que se anunciava. Disse que respirou fundo e... Estava cagado no corredor da vitória. Continuou andando. As pessoas passavam rapidamente, mudavam de calçada, entre outras coisas. A uma senhora que suportou ou não percebeu o cheiro pediu um lençol e ela perguntou pra quê.

- Preciso me esconder de mim mesmo. (gargalhadas solitárias e constrangimento geral).

A essa altura do campeonato eu achei que não ficaria mais constrangida, mas ele ainda não tinha acabado. Seguiu sua narrativa. Andando cagado até o Campo Grande, onde encontrou um banheiro público. Ao se aproximar uma senhora alertou-o que nos banheiros estavam pessoas usando drogas. Gritou: “que merda!” Logo em seguida, sentiu os policiais se aproximarem e perguntando agressivamente: “que merda o quê, rapaz?” Respondeu se esquivando e com voz mansa: “merda que tá saindo dentro de mim, não ta sentindo o cheiro não?” (teria sido o momento de catarse no teatro e parece que ele sabia disso, deu a pausa para o público terminar o riso).

Voltou para a narrativa falando de como conseguiu pegar água no chafariz da praça e se banhar dentro daquele banheiro. Disse que jogou a roupa fora e que tinha outra na mochila e que seguiu. Como mora na rua, não fez muita diferença não ter dito para onde.

Ríamos sem graça para não deixar ele sem graça. Não sei se foi a melhor opção, mas foi o que aconteceu. Aproveitei a pausa do riso e agradeci as respostas. Ele agradeceu também. Ainda recebi um elogio. Disse que eu parecia uma conhecida dele que havia sido miss em alguma cidade dessas do interior e que ela tinha se classificado em terceiro lugar como miss Bahia. Ele queria conversar mais, e acho que se déssemos trela estaríamos lá até agora.

Saiu...

Com algum tempo também saímos e qual foi a surpresa encontrarmos ele no caminho de novo. Perguntei se tinha comido; com o mesmo humor, ele disse que sim e que ainda tinha lhe sobrado algum dinheiro para tomar café no outro dia. Levantou-se do banco e veio em nossa direção. Disse que estava indo para a fila do seguro desemprego e que se nós conhecêssemos alguém que precisasse desse serviço, que ele cobrava vinte reais. Disse que as pessoas cobravam quarenta, até cinqüenta, mas que ele só cobrava vinte.

Minhas amigas e eu nos olhamos com a cumplicidade de quem queria poder “indicar algum cliente”, mas sem conhecer “nenhum” respondemos quase em coro que se soubéssemos de alguém falaríamos. Pura hipocrisia. Respondemos mecanicamente a um alguém que nunca vimos, num lugar que não freqüentamos, e sem pretensões de volta. Aposto que ninguém pensou em ir à fila do seguro desemprego encontrar com ele para fazer essa indicação.

Desejamos sorte um ao outro. E nos despedimos com alegria, estranha alegria.

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Que dia!!!!


Quanto custa praticar o inglês enferrujado com um gringo?

- BRIGUE COMIGO EM PORTUGUÊS!!!!!

Foi o grito que Kelly me deu. Quebrou a crosta de gelo que se formara num espaço de tempo curtíssimo entre o Wet´n Wild e algum outro lugar na paralela. Não contive o riso. Mas a embriaguez não permitiu que me deslocasse por muito tempo.

Depois de tantos "fuck you" não entendo como não nos agredimos ali mesmo dentro do carro. A gringa deu trabalho! Muito trabalho! MUITO TRABALHO!

Já tinha me arrependido de tê-la convidado para a formatura de um amigo. Eu e minhas inconsequências. Como convidar alguém que não se conhece para uma comemoração íntima e tão importante? Foi o que mais ouvi no dia seguinte. Mas não achei mesmo que tivesse problema. Pelo menos até o momento em que a convidei.

Quando estacionamos o carro achei que o problema havia ceifado. Pedi dez minutos para me reestabelecer do stress mas o meu estado de sub/in/trans- consciência não esperou os dez minutos para me colocar em sono profundo. This is my falt. Sim, era um pesadelo.

Acordei assustada com um pedido de mudança de cama e assim o fiz. No outro quarto já dormia Carol e a gringa. Kelly e Nina, eu não sabia por onde andavam e não fiz muita questão de saber. Tombei no colchão qual uma fruta que cai da árvore, dei os quicks necessários para atingir a velocidade zero e ali fiquei até o amanhecer.

Fui a primeira a acordar. Melhor, a segunda. Carol saiu de madrugada, ia encontrar o namorado no aeroporto para uma viagem durante o feriadão. No quarto de Nina soube que a noite não acabara tão "tranquila" quanto pensei. A gringa tinha dado MUITO mais trabalho do que a minha pobre imaginação pudesse vislumbrar.

O dia iniciava com seu momento fofoca e à medida que ia me atualizando ia me arrependendo cada vez mais de ter feito aquele convite.

Ela (a gringa) tinha sérios problemas com regras. E acho que isso se intensificou aqui no Brasil, país que habitualmente é interpretado como a casa da mãe Joana pelos estrangeiros. (Falo a gringa não por preconceito, mas para os leitores não a identificarem. Não pelo nome pelo menos...)

Com pouco tempo de conversa Kelly acorda e é seduzida pelo canto da sereia (barulho de fofoca) e se junta a nós. Os detalhes aumentam, a indignação também. Após exclamações, reclamações, críticas e discussões, Nina diz:
- A melhor hora foi quando Kelly gritou: BRIGUE COMIGO EM PORTUGUÊS!!!!

Aí sim nos permitimos a risada. Acordamos até a gringa. Forçamo-la a tomar um banho e enquanto isso arquitetávamos a sua "devolução" para o seu anfitrião oficial. Outra aventura. Mas essa merece um novo texto.

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Novo vôo.

Minha coruja não toca mais guitarra,
Resolveu tomar novos ares,
Visitar os amigos,
Conhecer o luthier que concebeu seu instrumento.

Acho que volta,
Espero que volte,
Com boas lembranças,
E com um pouco mais de habilidade com as cifras.

Terá bons professores,
Disso tenho certeza.
Novos acordes e batidas para alegrar a sua viagem,
Acho que estou até com inveja.

Conheça novos ritmos para me ensinar na volta.
Com a mesma alegria e intensidade.
Estou feliz por esse seu vôo.
Muito embora tenha ficado a saudade.

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

As estações.

Chega logo, primavera. O inverno é muito frio e ... suas flores são tão belas.

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Mar revolto

Tantas loucuras, promessas de rebelião, e procurava a calmaria das águas claras. Não disse que ia te levar pra um cruzeiro. Sempre soube que as águas eram turvas e a viajem turbulenta. Falei que a fantasia do carnaval estava pronta, e você ficou em casa com medo da chuva. Porque tanto medo?

As nuvens escureceram no céu e os marinheiros olharam-me desesperados, duvidosos, com receio de que eu desistisse, mas pedi que abrissem as velas. Quem quis desceu do barco, mas quem seguiu ainda não se arrependeu.

Abandonou-me na tempestade o marinheiro a quem dedicava o maior zelo. Não quero julgar sua fidelidade. Proteja-o, Senhor, dos seus instintos, e ajuda-me com os meus, porque esses são incontinentes.

Disse-me que não queria seguir por que o balanço do mar o enjoava, mas desceu do barco e logo subiu em outra jangada. Marinheiro, marinheiro... tenha cuidado com as ondas, respeite o mar.

Nas minhas orações peço Yemanjá para cuidar de você. Dar-te o colo e o carinho que não quer receber das minhas mãos. Dorme o sono dos justos, ainda que esteja longe de sê-lo. E quem sou eu pra falar de justiça, ladrão condenado, sem perdão, sem bagagem, sem riqueza. Dos bens que trago no bolso nada é mais valioso do que eu ofereci e julgou pouco. Minhas canções de amor, minhas promessas falhas.

Sem escudo nem espada, capitão bandido é meu nome, homem rude, grosso, viril, feio, desajeitado, tosco, não diria sem sorte, apesar de às vezes apostar na onda errada. Um homem de fé, que ama o mar e chora toda vez que acorda e dá bom dia aos seus colegas de tripulação e sente falta de um marinheiro.

Não posso ancorar no cais vendo você se aventurar de proa em proa. Se, sabe que amo as ondas, sabe onde me encontrar. Será um prazer recebê-lo de volta caso queira voltar. Sem retaliações, garanto. Mas hoje sinto que não posso prometer falta de perigo ao navegar por esse mar revolto.

 
Ana Míria Carinhanha