sexta-feira, 30 de março de 2012

Cântaro (presente de um amigo parisiense).

De volta roubastes o vinho
Para verter todo sobre ti
Vaso cântaro de Afrodite
Por teus anelos que tento 
Te segurar
Querendo reter-te sempre mais
E mais, que te busco
E ao encontro, ao acaso
Suave
Bebo-te inteira
Porque a minha é a sede
Mais limpa
Para um vinho tão rubro
Para um pecado tão cedo
Para um milagre que não chega.

segunda-feira, 26 de março de 2012

A manha é ser

Clareou
Lá fora parece igual
Mas é bem diferente
Amanheceu singular
Manhoso e ganindo
Tempo de esperança
Contudo e portanto
Bom dia

domingo, 25 de março de 2012

Amadurecer

Amadurecer exige paciência, erros e vontade de acertar.
Exige respeito com o outro e consigo.
Exige calma e exige também alegria.
Exige silêncio.
É fruta que rumina a si mesma para não apodrecer no pé.

A velocidade das formas

O piloto não reage
O carro não move
O vento não soa
O motor não canta
Autorizada a largada
Ele não vai competir
Não esboça reação
O capacete guarda um mundo
Olhos abertos
Não fixam ponto algum 
Miram o nada
Não faz nem desfaz
Parece que ataca
Enquanto se recolhe
Sem se mexer
Não ouve a sirene, o rádio da equipe
Os carros se aproximam
E uma volta atrás
Acelera sem vontade
Encosta no box
Sai do carro
Caminha lentamente
Retira o capacete
Abraça a esposa que aguarda aflita
Chora como um menino
Já não é um piloto
É mais um que não entende o enredo,
Mas amanhã estará a procurar emprego.

Ação

Entre você e eu
Um mundo caduco de tantos "pois é"
Na cena editada
Sem final
Sem roteiro
Pedimos um corte
E o diretor não atende
Perdidos dos nomes
Encaixados no show
Coadjuvantes na própria história
De um futuro doído e assentado
Em que a vida acontece
Passa depressa
Nos lembra da morte
Da falta de sorte
E a gente mente
Desteme a partida
De quem ainda
Se procura na vida

A insensatez do gesso

O amor quebrou a perna
Passa os dias mancando
E não pode entrar no mar
Clama correr e nem anda direito
O amor está desesperado
De perna para o ar
Assiste ao por do sol calado
Pois não pode entrar no mar

sexta-feira, 23 de março de 2012

Verdade (Carlos Drummond de Andrade)

A porta da verdade estava aberta,
mas só deixava passar
meia pessoa de cada vez.

Assim não era possível atingir toda a verdade,
porque a meia pessoa que entrava
só trazia o perfil de meia verdade.
E sua segunda metade
voltava igualmente com meio perfil.
E os meios perfis não coincidiam.

Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta.
Chegaram ao lugar luminoso
onde a verdade esplendia seus fogos.
Era dividida em metades
diferentes uma da outra.

Chegou-se a discutir qual a metade mais bela.
Nenhuma das duas era totalmente bela.
E carecia optar. Cada um optou conforme
seu capricho, sua ilusão, sua miopia.

terça-feira, 20 de março de 2012

A corda

Eu queria acordar e não conseguia.
Já era dia.
Lembrei-me do porteiro que me perguntou se eu estava feliz.
Como nunca pensei em perguntar isso a ele antes?
Evanilson, trocou meu chuveiro quando precisei...
Adorava as guloseimas que a minha avó mandava do interior.

Apertava os olhos para pegar impulso,
Mas, na hora de abri-los, ficavam lá
Cerrados.
Ouvia o barulho dos carros,
O dia passando lá fora.
A vida gritava me querendo ter
E eu não acordava.

Era um picadeiro bonito
Com cores quentes.
Eu me equilibrava na corda bamba
Com uma vasilha de cocadas na mão
Do outro lado estava Evanilson,
Perguntando se eu era feliz.

terça-feira, 13 de março de 2012

Do que importa

Fugir é bom quando ficar é prisão,
Ficar é bom quando fugir é covardia.
Mas é preciso ter força
E um bocado de coragem
Para sair sem rumo,
Construindo as próprias estradas.
Levar na corcunda os sonhos ainda não maduros
Sem deixar que o peso da vontade pese sobre as nossas cabeças
E desabe os nossos corpos.
E é preciso ter armas
Para enfrentar os moinhos,
É preciso ter fé
Para crer nas promessas,
É preciso esperança
Para avançar com o outono.
Os traços mais finos na fotografia
Foram também as lembranças mais secas.
Os olhos cerrados curtindo o carinho,
Os poros gritando de medo da solidão.
Vê-se: a criança corre e é feliz.
E é isso o que importa.

Nova poética (Manuel Bandeira)

Vou lançar a teoria do poeta sórdido.
Poeta sórdido:
Aquele em cuja poesia há a marca suja da vida.
Vai um sujeito,
Saí um sujeito de casa com a roupa de brim branco muito bem engomada,
e na primeira esquina passa um caminhão,
salpica-lhe o paletó ou a calça de uma nódoa de lama:
É a vida

O poema deve ser como a nódoa no brim:
Fazer o leitor satisfeito de si dar o desespero.
Sei que a poesia é também orvalho.
Mas este fica para as menininhas, as estrelas alfas,
as virgens cem por cento e as amadas que envelheceram sem maldade.

quinta-feira, 8 de março de 2012

Apocalíptico

Tiraram um homem para besta, mas de besta ele só tinha a blasfêmia que jorrou de outras bocas contra sua cabeça.
Escorregou pela sua cabeça.
O poder a ele atribuído não trazia resquícios felinos, tampouco feridas ou dor.
Trazia, entretanto, uma chaga incurável, da perda daqueles que um dia amou.
Talvez o mundo nunca o perceba.
Talvez o mundo nunca se dê conta dos seus anos de vida, e estes fiquem restritos ao seu igualmente restrito círculo de trabalhadores contra os quais ninguém poderá trabalhar fora do método laboral tradicional condicionado à magnitude do cotidiano.
Contaram-nos estórias de homens que entortaram espadas com fé e paciência, que fizeram ouvir nos céus seus gritos.
Contaram-nos também estórias de homens que transfiguraram-se em outros, em animais, em folhas.
E disputaram até a morte um poder sobrenatural.
Condenaram seres, coisas, conceitos, definições, projeções.
Nem os números ou as cores escaparam.
Condenaram a condenação, a salvação, e agora querem condenar a luta.
Uma disputa de poder inofensiva,
Pronta para acabar com a humanidade.

Humildade ou conveniência.

Quando o calo aperta, a gente calça o sapato velho para não ficar de pé no chão.

Homônimos

"De resto, cada João Brandão, dentro da mesmice da espécie, é diferente do outro, e até de si mesmo". (Carlos Drummond de Andrade).

terça-feira, 6 de março de 2012

Os cães que ladram pela madrugada são mais solidários na vida e mais solitários na morte.

06/03/12

Cuidado com a insônia
Que ela te pega
E te apresenta à madrugada...