sexta-feira, 30 de julho de 2010

Todo torto no buzú!

- Quando eu nasci um anjo torto veio e me disse:
- Humm... Esse vai morar em Cajazeiras 58!
- Poxa, essa menina, não tem um lugar melhorzinho não?
- Não, meu filho. Você acha que eu já nasci aqui na sombra, foi? Morei no centro histórico na época da desapropriação. Até eu virar anjo deu foi muito trabalho.
- Mas querubim, minha mulher tá grávida. Vou ser pai. Morar longe vai ser ruim pra mim.
- Colé, meirmão. Tá ruim pra todo mundo. Taxa de natalidade tá que nem especulação imobiliária. É gente que não acaba mais! E não tem espaço pra todo mundo. Vai nascendo, indo pra lá, vai nascendo, indo prá lá... Vem cá, já quer ir pro Itaigara, é? Corredor da Vitória, Alphaville?
- Né não, dona anja, sabe o que é?
- Hum?
- Consultei aqui no oráculo e vi minha entrevista de emprego. A senhora tinha até gostado de mim, mas quando eu falei que era de Cajazeiras, já viu, né? Botou meu currículo atrás dos outros e pediu para eu aguardar contato.

(...) No ônibus.

- Carlos, Carlos!!! O buzú passa cheio de pernas: pernas pretas, pernas negras, pernas escuras...
- Pra quê tanta perna, meu Deus? Pergunta meu coração. (Freada brusca do ônibus). Porra, motor, não cabe mais ninguém aqui não! Tá levando boi é, sacana?!
- Porque você não deixa crescer o bigode? Vai parecer mais velho, talvez te levem mais a sério.
- Pô, minha tia. Um calor retado desse. Tenho que ir de paletó até o Iguatemi todo dia, e a senhora ainda quer me lançar um bigode? Adiante meu lado aí, vá? Na moral! Cajazeiras tá barril!
- Carlos, Carlos. Querido Carlos. Se você fosse branco, filho de doutor, se seu sobrenome ao invés de Silva fosse Magalhães, não teríamos uma rima, e sim soluções.
- Ah! Mas aí eu teria que nascer de novo e numa rodada bem boa. Um preto 17, talvez. Aliás não, preto não, vermelho 27.
- Não, meu filho, isso não é questão de sorte. Eu não devia te dizer, mas essa cidade, essa batalha, botam a gente comovido como o diabo!


Ana Míria Carinhanha
Obs: Vejam "Poema de Sete Faces" de Carlos Drummond de Andrade. "Dicas de roleta" Demétrio Braga.

segunda-feira, 26 de julho de 2010

Cumplicidade das palavras não ditas.

Não precisava ter hesitado em responder (ou não), era só desligar. Já tinha engolido um pouco daquela vontade louca de sair pelas ruas perguntando o por quê. A cara inchada de tanto chorar, sem energias para comer, apesar de ter jejuado o dia inteiro, com aquela angústia presa na garganta e a preocupação apertando o peito que de tão pequeno impedia o próprio coração de bater.

Preocupação! Não perguntem o por quê, já pedi. Motivo ou razão inteligíveis à consciência humana não explicariam. Quem sabe a metafísica conseguisse introduzir justificativa para tanto pranto. Foi-se o amor, veio a loucura.

As tentativas de se auto-acalmar pareciam em vão.

A velha na ponte era um reflexo. Morreu-lhe um filho? (Pensei com a mesma incerteza que me consumia em lágrimas.) Quanta desilusão!

A verdade parecia nua, crua, opaca. Sem intervenções, manipulações ou resquício de vontade de uma vida nova. Era aquilo e só aquilo. Nada além do que se podia enxergar.

Tantos amores, tantas dores, e as cores, para onde foram? Aquele dia o sono seria tranqüilo, apesar de não gerar descanso. Como um soldado que chega da guerra, com menos amigos, dá beijo nos filhos e lava as mãos com vontade de que muita coisa além daquela sujeira desça pelo ralo, mas não desce.

Entendo você, soldado! Chega vivo e não comemora.


Ana Míria Carinhanha

sexta-feira, 2 de julho de 2010

111

Me veja como um bicho
Me trate como um lixo
Sou o produto do rejeito
Do dejeto da fome

Receio estar condenado
A viver como resultado
De seus métodos
Pela falta de recreio nas horas

Que eu seja nada além das mágoas trazes contigo
E queres roubar os meus sonhos
Cansei de ser um alvo fixo
Cresci prolixo
Ou pro lixo?

Não sei, preciso me repetir
Saber por onde ir
Feito de favela não tem nome
Assim ninguém nota quando some

Então faça a soma
Some a soma do que somos
100 infância
10 preparado
1 fudido

Subtraio o sorriso da cara do inimigo
Divido entre os meus erros e as verdades dos teus livros
Nada além da soma do que somos...

Some e assume
O extraordinário como cotidiano
Quando
Todo o dinheiro ou seus donos
Já não somam mais

Que o futuro dos seres humanos
Hermanas, hermanos
Todos pobres, guerreiros
Tão podres, tão pobres

E a soma do que somos
Torna-se a soma de nossos sonhos
O resultado de uma suposta igualdade entre os homens
Uma ilusão

(Para fazer esse poema me apropriei da obra primeira 'A soma do que somos' de Preto Ghóez. Atenciosamente, Ana Míria Carinhanha).

O cão e a sorte



Meu cachorro era cego, manco e sem dentes, lindo! Sonhava como ninguém. Tinha cheiro de profecias. Não dava ponto sem nó, não ficava sem cadela. Gostava de novela, até a das sete. Só não enxergava. Ia todos os dias ao boteco da esquina, paquerava as meninas; era correspondido.

Suspirava nas horas vagas, não tinha medo de praga, não gostava de tapete no chão. Possuía um calçado de pano oval com astros nas pontas, um planeta para cada um dos seus treze dedos: Mercúrio, Vênus, Terra, Marte, Júpiter, Saturno, Urano, Netuno, Ceres, Plutão, Haumea, Makemake e Éris. Quatro na pata esquerda frontal, cinco na da direita e o restante na traseira.

Tinha três patas, corria como um atleta. Mas preferia andar calmamente. Possuia uma elegância inigualável. Só fazia xixi no seu busto esculpido no quintal. No lugar dos olhos mandei por duas bolas de gude de cores diferentes. Belas como o seu sorriso sem dentes.

Também não gostava de pente. Tinha pouco pêlo. Formoso, irresistível, não precisava de combustível, estava sempre com o tanque cheio. As cadelas o idolatravam. Sempre disposto. O terror das cachorrinhas; charmoso como nenhum outro cão para aquelas com mais idade. Disputado.

Morreu atropelado por um F-35C. Foi brincar com uma de suas pulgas e pulou alto demais, colidiram antes que pudesse atingir o marco zero da parábola. Esfarelou no ar tal poeira de vulcão, vulcão azul. A pulga sobreviveu, mas chorou muito a perda do amigo comensal. Foi em busca de outro cão com a certeza de nunca mais achar outro igual.

Quem o esculpiu está gozando até hoje.
Ana Míria Carinhanha

quinta-feira, 1 de julho de 2010

Aos cuidados de um cego.


Certo dia rendeu-me a tristeza e montei num cavalo alado. Buscava o infinito. Queria ir para longe, sem saber o quanto e nem aonde chegar. No meio do pseudo-destino percebi que o cavalo havia se cansado e ainda assim percorri vidas à pé. Na medida em que me cansava empenhava mais força nessa caminhada para lugar nenhum. Meu desejo era caminhar até cair por não mais agüentar; sem forças para voltar, mesmo sem saber de onde.

Rodeado de um imenso mar de nada, uma luz intensa ofuscava meus olhos. Não havia noite; nem fazia calor. O sol consagrou-me em solidão, mas havia luz, sim, havia luz, cada vez mais luz, muita luz. O frio cálido dos meus olhos amedrontaria qualquer animal que tentasse se aproximar, mas não havia fauna, não havia flora; somente solidão, uma luz e frio, muito frio.

Um homem cego ia passando e fiz silêncio para que não me notasse, mas a minha respiração me denunciou. Ele levava nas mãos uma caixinha amarela amarrada com um cordão escuro em forma de laço. A curiosidade era grande, porém insuficiente para perguntar o que havia lá dentro.

Embora tivesse me notado, parou e não disse nada. (Será que também é mudo? Pensei).
Mas de repente entoou um canto sereno. (Não era mudo, a resposta veio logo). O canto nada dizia em palavras, mas a vocalização ia provocando em mim sensações no mínimo estranhas. Senti-me uma poesia sem autor, uma canção sem melodia, e aquela voz ia me possuindo, completando toda aquela solidão que há pouco me consumia. Tomava o ambiente de uma forma indescritível. De repente, percebi que a caixa não estava mais em suas mãos.

Acabado o canto, saiu como veio, do nada, e como se nada tivesse acontecido. Logo o perdi de vista. Havia dado o seu recado, parecia satisfeito.

Ali, sentada, a solidão não era mais a minha única companhia. Bem ou mal, aquela imensidão de falta de qualquer coisa compartilhava comigo o meu silêncio, uma espécie de cumplicidade que em pouco tempo nos tornou grandes amigos e trocamos confidências valiosas.

Olhei para cima e vi aquele laço...

Desde então, encontro-me dentro dessa caixa, e sei que esse homem cego está “olhando” por mim. Sinto-me confortável com os seus cuidados, vez por outra ainda ouço a sua canção. E respiro.