terça-feira, 22 de junho de 2010

Meu último cigarro.

- Como foi que você parou de fumar?
- Um dia eu acordei e falei que de hoje em diante eu não ia mais fumar e parei.
- (Silêncio)
- Por muito tempo não estive preparado para enfrentar o cigarro e sempre queria fumar, ainda sabendo que não devia, que não me fazia bem. E é por isso que se chama vício.
- Você atribui isso à sua força de vontade?
- Também, mas não só a ela. Cada pessoa é diferente, tem um vício diferente, e uma relação diferente com esse vício. A força de vontade é importante, mas não é tudo.
- E porque você começou a fumar?
- Sabe como é, queria experimentar. Aquilo me desestressava, e, no início ninguém acha que se vicia, ou que não faz mal, ou que, ainda que faça, vai conseguir parar na hora que quiser, mas ia precisando aumentar as doses para atingir o mesmo efeito. Até que um dia o médico falou que iria morrer se não parasse.
- Parou então por causa da doença?
- Não exatamente, já sabia da doença. Meu avô uma vez foi colocado na parede por minha avó. Ou parava de beber, ou saia de casa. Nunca mais ele colocou bebida alcóolica na boca.
- Então é preciso ter situações de escolha em que uma perda é considerada maior que a outra?
- Não necessariamente. Há pessoas que param sem precisar ter que escolher entre o cigarro ou a vida, ou uma amizade, ou um amor. Apenas param, dizem que vão parar e pronto. Não vejo mal nenhum nas promessas, até mesmo quando não são cumpridas. O problema das promessas é para quem não acredita nelas e são desonestos consigo mesmos.
- Se arrepende de ter sido um fumante?
- Não. Ninguém nunca me obrigou a fumar. Talvez se eu pudesse escolher teria feito tudo novamente, e igual. Não existe muito segredo. Apenas procuro saber dos riscos daquilo que faço. Não gosto de ser enganado. Não o sendo, procuro responder pelas consequências daquilo que fiz.
- E acha mesmo que esse foi seu último cigarro?
- Se não achasse não teria dito. Ainda que não seja. Cara chato da piiiiiiii...


(Ana Míria Carinhanha)

sexta-feira, 18 de junho de 2010

A sina do sol


Não sei o porquê de os ventos convergirem bem aqui na minha janela. Estão muito chateados e querem intensamente chamar a atenção de algo lá fora. Gritam, sussurram, gorjeiam e voltam a gritar, esperneiam desesperadamente e não há nada que os contenha. Nem meu cansaço, nem meu sono, nem a minha solidão.

E me fazem companhia nessa noite que talvez fosse calma não fossem seus urros ensurdecedores. Dão carona às nuvens que deslizam no céu, umas, contra a própria vontade, resistem, outras parecem brincar, desmancham-se em e reconstroem-se em formas diversas. A cada tom uma outra condição e uma nova contradição amorfa.

E o vento se acalma e se enfurece, e as nuvens dançam e deslizam no céu em passos não ensaiados.

Não havia sincronia, a noite seguia permitindo encontros e desencontros, entre ventos e nuvens, e eu ia entendendo aos poucos o porquê de os ventos convergirem bem ali na minha janela.

Vejo a formação dos pares: os ventos conduzem movimentos sinuosos no bailar das suítes. As nuvens deleitam-se, são só cintura. Entrelaçados no ar se beijam. E tudo se acalma.

Sem conseguir passar despercebido, o céu chora tranqüila e incontidamente ao ver os ventos e as nuvens se acalmarem nesse encontro, e o sol chegar para viver mais um dia de sua sina: amar a lua e não poder tê-la, pois, como se a espantasse, ela sempre foge para o horizonte mais próximo.


(Ana Míria Carinhanha)

domingo, 13 de junho de 2010

Boa viagem...

O que você diria a um colega de faculdade caso ele resolvesse viajar quando o semestre está pegando fogo, provas em vista, trabalhos por fazer, a selva de pedras querendo te engolir a cada dia, no trânsito, nos livros e apostilas espalhados pelo quarto, no despertador que a cada manhã nos faz lembrar de obrigações e regras de conduta às quais devemos seguir... Não tive outra opção senão desejar: BOA VIAGEM, JHONNY!




(Ana Míria Carinhanha)

sexta-feira, 11 de junho de 2010

Menino erê.

Menino moreno dos olhos certeiros
Deu-me um poema, milhões de motivos.
É dessas pessoas que não encontramos todos os dias na vida.
Lindo. Falava de uma moça desafortunada de sorte.
Do seu destino nem tão alegre, mas não menos belo por ser triste.
Amor ao longe, a dor tão perto.
Queria compartilhar a beleza da tragédia da moça:
Perdeu-se do próprio nome. Dos palácios às ruas, das ruas ao nada.

E pensou em mim.
Feliz por ter me escolhido, quis vesti-lo eu de sonhos.
Não pelos seus beijos, não por ter aberto meu vestido.
Muito menos pela desgraça de Gisberta.
Chamou-me sensível.
Longe de desmerecer aquilo que se considera frágil.

Falei que não precisava nem gritar,
Que eu estaria atenta ao seu mais breve sussurro.
E vi a noite dançar a balada que ele compartilhou comigo.
Ah, moço moreno, barba fechada, sorriso impecável.

Olhe para frente. É impossível não se apaixonar por seus olhos.
Tanta beleza, tanta tristeza, tanta alegria.

Fico feliz, menino, por te querer tanto bem. E ver em você um pedaço de mim.

Esse palhaço que se faz platéia para só para rir junto.

O céu vem te buscar num futuro de luzes.
E pode deixar que o fim espera. Ah, se espera.

Escolha a avenida onde quer dançar.
Prefere ser mestre-sala ou tem outro desejo?
Pode brilhar à vontade esse brilho que é só seu.
Viva o homem que você é; acredite no homem que você quer ser.

Vai moreno, sem medo.
Trilhar esse caminho cheio de pedras, cheio de estrelas.
O pó das sandálias sai na corrida,
No atrito da sola com o chão.
Vão te abraçar.
Te dar onde morar. Casa, comida, colchão.

Quão belos esses olhos.
Cheios de perdão e bondade.
A infância não se perdeu de você.
Carrega-a nesse caminho.
Caminho de erê.
Porque o amor está tão perto.
Tão perto.
O amor está em você.

(Ana Míria Carinhanha)

sexta-feira, 4 de junho de 2010

Para cada um, os seus cada quais...

Para cada bucho, um novo modo de digestão, para cada empresa, um modelo novo de gestão, para cada gesto, uma nova comparação de modelo. Para cada modelo, novas formas de modelar. Para cada forma, a sensibilidade de cada artesão...
Acesse: http://www.netzaz.blogspot.com/
(Ana Míria Carinhanha)

Deus está em todas as coisas.


Deus existe. Ainda que não tenha prometido nada, que não seja messiânico, que nunca tenha estado em Meca, que nunca tenha se flagelado.

Deus existe. Ainda que não tenha existido cruz, vinho ou transubstanciação, Maria ou o próprio Jesus. Ainda que nenhum homem na Terra tenha se chamado Maomé ou chegado perto de algum litoral. Ainda que não existisse embarcação capaz de abrigar um casal de cada espécie animal existente em uma época que talvez não existisse.

Deus existe. Ainda que não seja um só Deus, ou vários deles. Ainda que cante em árabe, italiano, yorubá ou inglês.

Deus existe. Ainda que tenha tido esposa, e porque não, esposas, maridos, filhos, irmãos.

Deus existe. Ainda que seja um espírito, ainda que seja um animal, ainda que não se materialize.

Ainda que não seja divino, ou inveje os mortais. Ainda que não seja cristão, ainda que seja pagão, Deus existe.

Deus existe, ainda que não houvessem existido templos, dos mais diversos possíveis, sempre existiram os momentos de contemplação.

Deus se prova com existência das sensações dos que choram perdas; dos que cantam vitórias. Dos que lamentam desastres, dos que se embriagam em glórias com pores-do-sol, luares e paisagens deslumbrantes. Dos que agonizam rumo à morte, dos que gozam a vida. Deus está nos sons e nas cores mais discretas, e também nas sinfonias e nos caleidoscópios que nunca passarão despercebidos. Está na amizade, no carinho, no abraço. Está no cheiro daqueles que amam. Está na tragédia e na poesia, na doença e na cura. Na doçura dos gestos despretensiosos. Na ternura dos que acreditam na paz.

Está na pobreza, na compaixão, na economia, na reciclagem. Está na ciência, na filosofia. Nos contos infantis, nos laudos de perícia mais objetivos. Deus está na alegria, na paciência, na humildade. Está nos códigos de ética, nas aulas de catecismo, nos livros de ficção; nos dicionários de acordes, nos trabalhos escolares, nas roupas em suas gavetas.

Ainda que não tenha roupas/ou estude moda; ainda que não saiba ler/ou seja um doutor em letras vernáculas; ainda que tenha sede/ou seja dono de uma empresa de abastecimento de água; ainda que não ande/ou corra maratonas periódicas, Deus existe.

E o Deus que há em mim saúda o Deus que há em você.

(Ana Míria Carinhanha)

quinta-feira, 3 de junho de 2010

Começar

"...é poder ver as coisas pela primeira vez, ainda que as tenha visto setenta mil vezes antes. Estar sempre virginalmente diante do mundo (apesar de os famas nos agredirem chamando-nos de imprevisíveis, de nunca contar com os olhares de adãos para um fazer esperado...) Começar é poder conservar o olhar de Adão, logo, imediatamente, no segundo instante de haver mordido a maçã... Começar é perguntar-se como se começa apesar de ter feito uma infinidade de vezes antes esse mesmo trabalho. Isso vale para o amor ou qualquer outra produção de nutrientes; vale também para dotar de poesia qualquer rotina, para tudo o que sempre ameaça passar igual no correr dos dias. Perguntar-se como começar de forma constante é a possibilidade de sair de qualquer rotina. É a arte que esconde todo começo. É o primeiro segredo da arte de amar." (Warat, Luis Alberto)

Apenas um registro.


Plac. Plac. Plac. Carimbou as três folhas seguidamente sem nem olhar para mim. Manipulava-as com pressa e agilidade.
Trabalha aqui há anos, pensei. Também pelo seu humor, característico de quem não gosta da rotina que leva.
Quis perguntar algo, mas não houve abertura alguma. A velocidade com que manuseava a pasta e os papéis faria qualquer sujeito sentir-se mal vendo seus dados, fotos e composições dançarem um prelúdio em fusa nas mãos daquela senhora.
Queria vencer a impressão que tive quando ao entrar na sala timidamente, sentei-me. E, como um atleta que consegue um lugar ao pódio e o juiz manda-o descer dizendo que foi pego no exame anti doping, de repente, lá estava eu com as mãos vazias.
- Dá licença aqui, minha filhinha. (Puxou a pasta da minha mão para retirar os papéis que queria).
O rigor dos movimentos destoavam da sua aparência frágil.
Tal qual uma criança que vê o bixo papão aproximar-se do coleguinha, muito sem jeito ainda pedi a pasta de volta para separar papéis que não seriam usados por ela. Coisas pessoais, tão pessoais quanto às músicas que ela carimbara com tanto “empenho”.
- Não, pode deixar, vou separar só o que eu quero.
Vap, vap, vap. Logo estava eu, de novo, com meus papéis inúteis nas mãos. Agora sem pasta, sem xerox de RG, CPF, comprovante de residência e sem a cópia das músicas e do comprovante de pagamento da GRU. Conferi o que tinha em mãos e ergui a cabeça sem entender muito bem o que acontecia. Acho que tive vontade de pedir tudo de volta e sair sem fazer o que me levara até ali: APENAS UM REGISTRO.
Ela estava fazendo exatamente o que deveria fazer, de acordo com os desígnios de suas funções para exercer determinado cargo, em determinado local, durante determinado tempo, atendendo a pessoas determinadas que, preenchendo os requisitos determinados, atenderiam às suas determinações. Nada além disso, mas qualquer um entenderia o porquê da minha inquietude.
- Preencha essa ficha, assine aqui, aqui e aqui.
Três “Xis” determinavam onde eu deveria atuar naquele momento. Talvez o silêncio fosse mais terno que o barulho daqueles papéis cortando o ar como mísseis ferozes.
- Pronto.
Terminado. Levantou a cabeça e pela primeira vez e olhou-me como se estivesse pedindo para que eu saísse logo. Recolhi as minhas coisas e me preparando para sair:
Crap. Olhei para trás e fiz meu segundo contato visual com o convite para me retirar.
- Você vai esperar noventa dias para receber o certificado em sua casa, se não o receber até o dia 02 de setembro pode ligar para esse número (apontou o número no papel). Se ligar antes do prazo vai ter que pagar a taxa de novo, tá escrito aí.
- Obrigada.
- De nada.
Saí com um número de protocolo em mãos e uma impressão que quis registrar aqui, talvez com um pouco menos de agilidade, isso é inegável, porém, com muito mais prazer. Apenas um registro.

(Ana Míria Carinhanha)