domingo, 25 de outubro de 2009

Você tem preconceito!



As imagens acima sugerem de imediato uma reflexão acerca do racismo. É escancarada a intenção de Toscani em nos mostrar que o racismo é uma construção social. Chega a ser agressivo de tão óbvio que nos é a percepção de que as crianças não nascem racistas, muito menos superiores umas às outras em decorrência da cor da pele. Elas são condicionadas, ao longo da vida, a interiorizarem o racismo refletido pelas outras representações encontradas na sociedade, nos adultos, e, posteriormente, nelas mesmas.
Na primeira foto temos duas crianças sentadas em seus respectivos pinicos, em posição de igualdade, se descobrindo, compartilhando o mesmo espaço, enxergando em si quase um reflexo. Um dos meninos coloca a mão em sua boca e na boca do outro menino como se dissesse: “olha, você tem uma boca igual à minha!”. É a representação do equivalente. Já na segunda foto temos uma das crianças representando um anjo e a outra um demônio. É o reflexo da relação de divinização e demonização da cor da pele em que a criança “branca” representa o que é bom, puro, divino, iluminado, e a criança “negra” representa o que é mau, sujo, impuro, obscuro. É como se Toscani colocasse à prova a nossa Inteligência. “Será que você não vê que essas crianças são iguais e que a cor da pele não lhes altera o caráter ou a dignidade? E que amanhã essas crianças serão os novos adultos? Até quando vamos disseminar esse preconceito?” É muito interessante a forma como chama o “consumidor” a refletir e sugere o rompimento dessa odisséia. A Benetton é famosa pela forma como faz suas “propagandas/campanhas”, de maneira crítica, quase que imperceptivelmente “vendendo” o seu produto. O fato é que, além do politicamente correto, ou da propaganda pura e simples, muitas vezes medíocre, encontrada cotidianamente, a Benetton transgride com campanhas como essas. Toscani aciona questões como racismo, AIDS, conflitos étnicos em suas imagens e provocando as mais diversas reações aos que passam pelos outdoors ou vêem em revistas as suas fotos.


sábado, 24 de outubro de 2009

Aos meus filhos...

Hoje acordei e olhei para o lado, lá estava meu marido, teso, como um desdobramento do colchão. O pensamento de ter que levar as crianças à escola atropelou qualquer reflexão diária que pudesse me ajudar a digerir aquele dia que se iniciava deveras estranho.


Estava triste. Tomei um banho rápido, vesti-me. Não tive coragem de dar bom dia para as crianças. Arrumei os papéis e fui em direção ao carro, hoje, em silêncio. Ao passar pela primeira portaria reparei um moreno alto com a farda do condomínio (gostoso! Pensei com a intensidade de quem saboreia um chocolate que não come faz tempo). Sem perceber, retardei o passo e olhei para o rapaz que não se intimidou com a pose da madame-patroa. Senti-me indignada e complementarmente feliz. Dos cantos das bocas escaparam sorrisos discretos, no entanto, evidentemente mal intencionados.


O barulho do alarme ao destravar o carro me fez abanar a cabeça em busca de sobriedade. No retrovisor percebi que as crianças me estranhavam, mas nada disseram, entraram no carro e também em silêncio até a escola, me olhavam com certo ar de dúvida; medo; tristeza; não sei dizer bem o que sentiam.


Em frente ao colégio, parei. Ainda olharam para trás quando desceram do carro; era como se quisessem perguntar algo, mas também não tiveram coragem. O ar matinal turvou meus olhos que, somados à cena de ver tantos jovens entrando por aquele portão como água que desce pelo ralo, estava me deixando atordoada. Por um segundo imaginei a saída no último dia de aula. Todos encaixotados em pacotes com rótulos iguais, prontos para serem consumidos no mercado. Filosofia complexa para uma segunda-feira pela manhã.


Ainda doíam em mim questões mais orgânicas. Estaria eu “educando” os meus filhos como covardes? Porque o silêncio deles? Estariam com medo? Mas porque teriam medo de mim? Não seria eu a pessoa em que mais deveriam confiar? Aquilo me deixou reflexiva. Agora tenho mais um motivo para me preocupar: o que fazer com meus filhos? O que fazer dos meus filhos?


Lembro-me de quando ainda eram bebês, das cólicas, do choro de fome, das risadas gostosas, dos primeiros passos, de quando começaram a comer de colher, a ir sozinhos ao sanitário, do primeiro dia de aula, e hoje já estão no ensino fundamental... Por um lado sinto-me confortável em poder “investir” na educação das crianças, durante toda a vida matriculei-as em bons colégios, bem localizados, professores bem conceituados, ensino de primeira qualidade. Estou fazendo a minha parte! Mas será isso o fundamental?


Não conheço os sonhos dos meus filhos, certamente eles os têm. Será que têm sonhos? Têm! Espero que não sejam sonhos medíocres, mas certamente o são. Convivem com pessoas medíocres, em espaços medíocres, em meio a tantas competições (medíocres), que muito provavelmente fará deles pessoas medíocres. É um ciclo. Faço ou não dos meus filhos bons seguidores?


Consegui estruturar uma família teoricamente perfeita: casa e carro próprios, emprego estável, bom salário, bom casamento, filhos saudáveis, vamos ao clube nos finais de semana, viajamos nas férias... Temos a vida sonhada, idealizada e “querida” por quase 100% da população brasileira; somos felizes! Somos felizes? Que conceito e qual o exemplo de felicidade estou dando e sendo para os meus filhos? Uma felicidade ideal que talvez não seja real. Nesse caminho, por onde perdi meus sonhos?


Dediquei grande parte da minha vida em busca de tudo o que tenho hoje e ainda me sinto incompleta. Julguei os “loucos” que agiam diferente de mim, eram inconseqüentes, irresponsáveis, imprevisíveis. E o que é esse meu futuro que hoje eu consegui alcançar? E quando conseguirmos realizar os nossos planos, o que fazer? Novos planos? Será que essas pessoas são felizes? Ou estaremos todos fadados à infelicidade ou à insatisfação?


Amo meus filhos, mas dói em mim a incerteza de poder ou não dar-lhes esse exemplo de felicidade; poder fazer algo além de simplesmente manipular palavras sobre ela ou ensinar, teoricamente, como alcançá-la. A felicidade não se ensina. Tantas fórmulas, ideologias e teorias... Busquei o equilíbrio, a ponderação, o comedido. Não digo que foi a solução mais trivial, por que seria atribuir a ela um caráter de facilidade que não é verdadeiro. Não foi fácil, mas o fato é que cheguei e hoje “descubro” que não queria estar aqui. Ou, pelo menos, que imagino poder ter sido mais feliz mirando outros horizontes.


É difícil admitir para os próprios filhos que para eles vai ser fácil chegar aonde cheguei; que vai ser fácil alcançar essa vida ideal. Se o discurso é dizer que vão estudar em boas escolas, se formar em boas faculdades, se relacionar com “boas” pessoas, ter bons empregos, famílias, filhos... (meus netos), estarei apenas dizendo que vão ser “bem educados” para seguir sem dificuldades o ciclo. Mas com quais valores?


O sistema os favorece, é fato. Estudei para entender o sistema, lutei para me adequar a ele, batalhei cada item dessa vida ideal, parcelei vitaliciamente cada pedaço de desejo de mudança, por fim, não sei se agradeço a “grande possibilidade” de ter filhos bem sucedidos porque seus pais foram bons seguidores do ciclo, renderam-se aos sucessivos esquemas de mediocridade, aceitaram o sistema e credenciaram-se no movimento da causa própria, ou melhor, dos sem causa. E essa batalha anti-revolução custou-lhes os sonhos, a vida real. E é por isso que essa rotina deve mudar hoje, agora, e mudar com muito barulho, muita insensatez, muita rebeldia, muita poesia...


Talvez eu não tenha filhos, muito menos netos, mas vou lutar pelos meus sonhos de agora sem planejar os próximos. Planejando-os, permitirei que não sejam maiores que os atuais ou os alheios; vou querer a mudança e lutar por ela, mesmo que pareça uma missão impossível ou a menos valorizada pela sociedade, porque se um dia eu tiver filhos NÃO QUERO QUE SEJAM AS CRIANÇAS DO TEXTO.



Ana Míria Carinhanha

sexta-feira, 18 de setembro de 2009

A profecia da terra


Sou a memória dos que não foram e que, por algum motivo, hoje se permitiu ser. Tolice de quem não acredita no que os seus olhos negam ser ou existir, ainda que já percebido.
Vou contar uma história que vocês já conhecem, mas de uma forma “diferente”. Fazia sol e abril anunciava o vigor do outono que se desenhava mais belo que a primavera européia, eu não estava lá, mas eu vi.
E nesse mesmo dia de abril “nomearam” a Ilha de Vera Cruz. De lá pra cá mudaram seu nome várias vezes até que decidiram chamá-la de Brasil, acho que agora é definitivo. E assim como nomearam a terra, nomearam as águas, as plantas, os animais, e tudo mais o que se pôde nomear. Dentre os animais nomearam alguns de “índios”. Estes se assemelhavam aos próprios portugueses, no entanto, vestiam-se “diferente”, ou melhor, pintavam-se “diferente”, falavam “diferente”, agiam “diferente”, afinal, não eram portugueses, logo, tinham seus próprios hábitos. Mas os portugueses acharam que essa diferença fazia desses animais seres inferiores, então decidiram escravizá-los para usufruir de seu trabalho e sua riqueza. No entanto, esses animais reagiram e resistiram.
Apesar de toda aquela “diferença”, não estavam acostumados a trabalhar para outros animais e a serem violentados de formas tão diversas sem saber o porquê. Com o tempo, os portugueses e a sua inteligência humana, ajudados por uma revelação divina, consentiram que aqueles animais possuíssem alma, e viram que existia algo em comum entre eles e os “novos humanos”. Agora, ambos dotados de alma, precisavam interagir para que “os novos humanos do novo mundo” fossem salvos.
Iniciou-se um longo, doloroso e violento processo de civilização, afinal, os portugueses precisavam salvar aquelas almas trazidas de presente da Europa, e elas não poderiam permanecer em um patamar tão inferior, deram-lhes então, além da alma, é claro, uma nova religião, uma nova língua, uma nova fé e aos poucos foram “civilizando” esses seres, ajudando-os a evoluir e a se purificar. E nesse processo de purificação eles iniciaram uma faxina, e limparam com suor, lágrima e sangue várias vidas, limparam as pinturas, limparam as crenças, limparam os dialetos.
E os índios continuavam a reagir, agora, dotados de alma e a um passo da (alfabetização) civilização, começaram a aprender os nomes que os, agora “irmãos”, portugueses davam às suas engenhocas, aos seus sentimentos, ou à falta deles, aos seus mortos, aos seus vivos, às suas escrituras, ao seu governo, à sua nação, às suas terras, e, aos poucos, foram preenchendo o grande vazio deixado pela “limpeza” promovida em prol da sua excelência pedagógica.
No entanto, alguma coisa resistia a esse processo de limpeza e deixava uma marca forte e escura: Visível. E essa marca era muito difícil de remover, acredito que vinha da terra. E aquela terra também escura tinha algo mágico que até hoje não consegui desvendar. Hoje me dizem que aquelas terras são da União, que essas são de particulares, mas os índios pareciam não entender de quem era a terra, pois eles é que pertenciam à terra, e não o inverso; eles precisavam da terra para sobreviver, e não a terra que precisava deles.
Precisavam também entender o que estava acontecendo, aquela gente estranha e violenta que chegara com ar superior. O fato é que entre armas e espelhos, necessitavam agora de novas curas para novas doenças, de novos espaços para novas atividades, de novo vocabulário, de um novo deus que lhes substituíssem os seus deuses. Mas nada era mais necessário que a velha vontade de reagir. E reagiram. E em meio a tantas necessidades, necessitou-se aprender erroneamente o conceito de justiça, não essa justiça da qual falamos hoje, mas a justiça que dava nome às guerras justas. E então, seria melhor não ser justo. E não foram.
Já dotados de alma e palavras, os índios precisavam também de um ofício, e não faltou quem viesse ensinar; os portugueses se achavam bons professores, mas perceberam tarde demais que erraram no método. Diziam que os índios eram preguiçosos, indolentes, e até agressivos, mas eles só estavam praticando a lição de casa. Os jesuítas viriam corrigir a tarefa, mas como os índios não correspondiam à metodologia daquela escola, resolveram então chamá-los de incapazes. E assim passaram a “protegê-los” e “ajudá-los” a se integrar na sociedade. Criaram leis, órgãos, delimitaram as terras, fizeram de tudo, mas os índios ingratos não se agradaram. E reagiram.
Não iriam deixar roubar-lhes a identidade, não iriam. Não eram portugueses, não queriam ser portugueses; não eram índios, não queriam ser índios; não tinham alma, não queriam ter alma; não eram civilizados, não queriam ser civilizados; mas também não eram folclore, não queriam ser folclore. Eram reais, queriam ser reais, e lutaram por essa realidade. Queriam cantar, lutar, manifestar-se através da sua língua, seus costumes, seus deuses. Queriam apenas ser o que eram antes dos intrusos chegarem. E regiram.
Depois de tanto tempo, tanta luta, questionar se o mito do bom (e do mau) selvagem ruiu é uma tarefa coletiva, mas antes de tudo individual. Será que esses preconceitos vão ruir? Ou será que os homens vão insistir em continuar nomeando outras formas de preconceito... De quem são essas terras afinal? Rousseau estava certo ao falar da ingenuidade daqueles que aceitaram o fincar das estacas que cercaram o primeiro terreno? O quão ingênuos foram e são os que aceitaram e aceitam esses cercamentos? Quem e o que legitima esse poder?
Dizem que no Brasil tem terra para todos. Também existe comida para todos e muitos ainda morrem de fome. Entender essa lógica demanda a crueldade mínima de quem já vivenciou a lógica capitalista. E os índios estavam acostumados a uma vivência bem “diferente”.
Apresenta-se difícil demonstrar o que vocês não viram. Histórias tão cruéis contadas assim parecem literatura, mas não são. Conseguir expressar melhor como eles resistiram, explicar de onde vinha tanta força... Ainda acho realmente que existe um mistério que não serei capaz de desmistificar, mas acredito que venha da terra, não essa terra que o homem marca e diz ser de alguém, mas a terra capaz de sentimentos, sim, capaz de sentimentos. Dá vida às árvores de troncos fortes, que dão o fruto que alimenta; sustenta as águas e todos esses prédios grandes e pesados; recebe a chuva que se precipita do céu; acolhe qualquer corpo que se estira cansado ao chão sem querer nada em troca. Terra que é terra não porque a nomearam assim, mas porque ela se faz assim e requer o mínimo de cuidado, não pela mesquinhez da troca pelo que ela dá, ao contrário, pelo que se sabe que ela não faz questão de receber. Da terra onde eu me ergo e grito e eu sei que a terra me escuta, presente nas transformações que se dão com o tempo. Tempo, tempo, tempo, tempo... Ciclo natural de construção e desconstrução do que é tangível ou imaterial. Sei que tocou as vozes dos que hora silenciados hoje se fazem ouvir. E sei que também tocou com sensibilidade e luta os ouvidos dos que não quiseram escutar e até mesmo dos que quiseram silenciar. E o que “nesse momento se revelará aos povos, surpreenderá a todos, não por ser exótico. Mas pelo fato de poder ter sempre estado oculto quando terá sido o óbvio”. O que é o tempo senão a percepção da mudança. Muita coisa mudou e muita coisa ainda vai mudar. E eu verei. Sou a memória dos que são, mesmo quando não queridos. Tolice de quem não acredita no que seus olhos negam ser ou existir, ainda que já percebido. Questionem, reajam.


(Ana Míria Carinhanha)

sexta-feira, 20 de março de 2009

Seja um idiota (Ailin Aleixo)


"Seja um idiota... A idiotice é vital para a felicidade. Gente chata essa que quer ser séria, profunda e visceral sempre. A vida já é um caos. Por que fazermos dela, ainda por cima, um tratado? Deixe a seriedade para as horas em que ela é inevitável: mortes, separações, dores e afins. No dia-a-dia, pelo amor de Deus, seja idiota! Ria dos próprios defeitos. E de quem acha defeitos em você. Ignore o que o boçal do seu chefe disse. Pense assim: quem tem que carregar aquela cara feia, todos os dias, inseparavelmente, é ele. Pobre dele! Milhares de casamentos acabaram não pela falta de amor, dinheiro, sexo, sincronia, mas pela ausência de idiotice. Trate seu amor como seu melhor amigo, e pronto. Quem disse que é bom dividirmos a vida com alguém que tem conselho pra tudo, soluções sensatas, mas não consegue rir quando tropeça? Alguém que sabe resolver uma crise familiar, mas não tem a menor idéia de como preencher as horas livres de um fim de semana? Quanto tempo faz que você não vai ao cinema? É bem comum gente que fica perdida quando se acabam os problemas. E daí, o que elas farão se já não têm por que se desesperar? Desaprenderam a brincar. Eu não quero alguém assim comigo. Você quer? Espero que não! Tudo que é mais difícil é mais gostoso, mas... a realidade já é dura; piora se for densa. Brincar é legal! Adultos podem (e devem) contar piadas, passear no parque, rir alto e lamber a tampa do iogurte. Ser adulto não é perder os prazeres da vida e esse é o único "não" realmente aceitável. Teste a teoria. Acorde de manhã e decida entre duas coisas: ficar de mau humor e transmitir isso adiante ou sorrir... Bom mesmo é ter problema na cabeça, sorriso na boca e paz no coração! Aliás, entregue os problemas nas mãos de Deus e que tal um cafezinho gostoso agora?"

sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

O Elefante





O elefante


Fabrico um elefante de meus poucos recursos. Um tanto de madeira tirado a velhos móveis, talvez lhe dê apoio. E o encho de algodão, de paina, de doçura. A cola vai fixar suas orelhas pensas. A tromba se enovela, é a parte mais feliz de sua arquitetura. Mas há também as presas, dessa matéria pura que não sei figurar. Tão alva essa riqueza a espojar-se nos circos sem perda ou corrupção. E há por fim os olhos, onde se deposita a parte do elefante mais fluida e permanente, alheia a toda fraude.


Eis o meu pobre elefante pronto para sair à procura de amigos num mundo enfastiado que já não crê em bichos e duvida das coisas. Ei-lo, massa imponente e frágil, que se abana e move lentamente a pele costurada onde há flores de pano e nuvens, alusões a um mundo mais poétio onde o amor reagrupa as formas naturais.


Vai o meu elefante pela rua povoada, mas não o querem ver nem mesmo para rir da cauda que ameaça deixá-lo ir sozinho. É todo graça, embora as pernas não ajudem e seu ventre balofo se arrisque a desabar ao mais leve empurrão. Mostra com elegância sua mínima vida, e não há na cidade alma que se disponha a recolher em si desse corpo sensível a fugitiva imagem, o passo desastrado mas faminto e tocante.



Mas faminto de seres e situações patéticas, de encontros ao luar no mais profundo oceano, sob a raiz das árvores ou no seio das conchas, de luzes que não cegam e brilham através dos troncos mais espessos. Esse passo que vai sem esmagar as plantas no campo de batalha, à procura de sítios, segredos, episódios não contados em livro, de que apenas o vento, as folhas, a formiga reconhecem o talhe, mas que os homens ignoram, pois só ousam mostrar-se sob a paz das cortinas à pálpebra cerrada.


E já tarde da noite volta meu elefante, mas volta fatigado, as patas vacilantes se desmancham no pó. Ele não encontrou o de que carecia, o de que carecemos, eu e meu elefante, em que amo disfarçar-me. Exausto de pesquisa, caiu-lhe o vasto engenho como simples papel. A cola se dissolve e todo o seu conteúdo de perdão, de carícia, de pluma, de algodão, jorra sobre o tapete, qual mito desmontado. Amanhã recomeço.

Carlos Drummond de Andrade (Em: A Rosa do Povo)

Homenagem a Waldick Soriano

Se ser brega é ser feliz quero ser brega até morrer

Esse texto não vislumbra um caráter descritivo, tampouco qualquer narrativa aqui presente pretende limitar a grandeza de um Caetiteense que marcou a história da música nacional. Constitui apenas uma homenagem expressa a Eurípedes Waldick Soriano, nascido em 13 de maio de 1933 em Brejinho das Ametistas, na cidade de Caetité, e eternizado em nossos corações.

Conhecido nacionalmente como o rei do brega, Waldick estreou uma vida boêmia e se orgulhava de ser um rapaz bastante namorador. Não conheci Waldick pessoalmente, mas falo com propriedade que ele deixou fãs eficazes na transmissão contraditória dos seus sentimentos mais exóticos e, ao mesmo tempo, bastante comuns. Suas músicas cantadas, avidamente, não me deixaram “esquecer” desse fenômeno da música brasileira. Dentre os seus fãs está a minha avó que, a título ilustrativo, aos 75 anos, em maio 2007, (para ser mais precisa, no dia 26) foi até a AABB de Caetité, apreciar seu conterrâneo.

A procura de fundamento teórico para escrever esse texto, li em alguns lugares que “na sua cidade natal, Waldick sempre foi tratado com certo menosprezo”; o que, de certa forma, admirou-me, pois, ao contrário, em minhas lembranças ficaram as cantorias, rodas de violão e luais ao resgate ao bom o velho brega. No entanto, apesar da minha jovem memória não ter presenciado essa fase de repúdio à música “Waldickiana”, fico feliz em saber que pudemos nos retratar a tempo e demonstrar a grande admiração pelo seu trabalho, carisma e criatividade.

Alguns dizem que ele é cafona, outros, original, muito embora o importante seja que, mesmo em face a tantas dificuldades, retaliações e preconceitos, Waldick transgrediu. E transgrediu com alegria e com paixão; para muitos, transgrediu mergulhado em uma intensa “dor de cotovelo”. Cabe aqui, além do silogismo implícito no título, um axioma: a saudade é a presença do que se faz ausente.

Você não virou viaduto Waldick, me alegra ver que Caetité ainda não cresceu a esse ponto, mas virou rua (Avenida Waldick Soriano), virou lembranças, virou saudade, virou música. E, mesmo não tendo a certeza em saber para onde vai uma música após o acorde final, hoje sabemos “QUEM ÉS TU” e nos orgulhamos em dizer que ÉS um dos filhos ilustres de Caetité e queremos que a sua “dor-de-cotovelo” doa por muito tempo em nossos ouvidos. “Waleu” Waldick.

Saudades.


(Ana Míria Carinhanha)

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

sen TI do

"A arte emana do corpo e da mente. Transmite o sentir desde sua forma mais primitiva da não matéria àquilo que se torna tangível através das percepções." (Ana Míria Carinhanha)