Era carnaval em Brumado, uma cidade no interior da Bahia, e a minha mãe tinha me fantasiado de "índio". Eu não sabia o que era direito, juro que não entendia, mas eu gostava.
Vocês se lembram de Cabral, do "descobrimento"..., da divisão de terras, dos navios negreiros, da escravidão indígena. Lembrou?
Rs... É... vai dizer que você nunca se vestiu de índio ou de português na escolinha? E que não foi engraçado e até divertido. Sei lá...
Pois é, né.
É impressionante como as escolas se preocupam em desenvolver o senso crítico desde cedo, a preservação da fauna, da flora, a valorização da cultura e do folclore. Mas eles esquecem de ensinar muitas coisas, que aquelas histórias eram muito mais reais do que a gente pensava, que os índios eram de verdade, e que também eram pessoas.
É muito romântico, não é? Mas eu demorei para perceber que atrás daquelas pinturas todas existia ALGUÉM.
As coisas vêem mudando. Como? Embranquecimento, catequização guerras, escravidão, doenças, demarcação de terras, silenciamento, violência, opressão, limpeza étnica, folclorização, RESISTÊNCIA!
Vou contar uma história que vocês
já conhecem, mas de uma forma “diferente”:
Fazia sol e abril anunciava o vigor
do outono que se desenhava mais belo que a primavera européia, eu não estava lá,
mas eu vi.
E nesse mesmo dia de abril “nomearam”
a Ilha de Vera Cruz. De lá pra cá mudaram seu nome várias vezes até que
decidiram chamá-la de Brasil, acho que agora é definitivo. E assim como
nomearam a terra, nomearam as águas, as plantas, os animais, e tudo mais o que
se pôde nomear. Dentre os animais nomearam alguns de “índios”. Estes se
assemelhavam muito aos próprios portugueses, no entanto, vestiam-se “diferente”, ou
melhor, pintavam-se “diferente”, falavam “diferente”, agiam “diferente”,
afinal, não eram portugueses, logo, tinham seus próprios hábitos. Mas os
portugueses acharam que essa diferença fazia desses animais seres inferiores,
então decidiram escravizá-los para usufruir de seu trabalho e da sua riqueza. No
entanto, esses animais reagiram e resistiram.
Apesar de toda aquela
“diferença”, não estavam acostumados a trabalhar para outros animais nem a serem
violentados de formas tão diversas sem saber o porquê.
Com o tempo os
portugueses e a sua "inteligência humana", ajudados por uma "revelação divina", consentiram
que aqueles animais possuíssem alma, e viram que existia algo em comum entre
eles e os “novos humanos”. Agora, ambos dotados de alma, precisavam interagir
para que “os novos humanos do novo mundo” fossem salvos.
Iniciou-se um longo, doloroso e violento
processo de civilização, afinal, os portugueses precisavam salvar aquelas almas
trazidas de presente da Europa, e elas não poderiam permanecer em um patamar
tão inferior, deram-lhes então, além da alma, é claro, uma nova religião, uma
nova língua, uma nova fé e aos poucos foram “civilizando” esses
seres (e porque não animalizando-os novamente,) ajudando-os a evoluir e a se purificar.
E nesse processo de purificação
eles iniciaram uma faxina, e limparam, limparam com suor, lágrima e sangue várias
vidas, limparam as pinturas, limparam as crenças, limparam os dialetos.
E os índios continuaram a reagir,
agora dotados de alma e a um passo da civilização e da alfabetização, começaram a
aprender os nomes que os, agora "irmãos", portugueses davam às suas engenhocas,
aos seus sentimentos, ou à falta deles, aos seus mortos, aos seus vivos, às
suas escrituras, ao seu governo, à sua nação, às suas terras, e aos poucos
foram preenchendo o grande vazio deixado pela
“limpeza” promovida em prol da sua excelência pedagógica européia.
No entanto, alguma coisa deixava
uma marca forte e escura: Visível. E essa marca era muito difícil de remover. Acredito que vinha da terra. E aquela terra também escura tinha algo mágico que
até hoje não consegui desvendar.
Hoje me dizem que aquelas terras são da União,
que essas são de particulares, mas os índios pareciam não entender de quem era
a terra, pois eles é que pertenciam à terra, e não o inverso; eles precisavam
da terra para sobreviver, (precisavam da terra, precisam da terra), e não a terra que precisa ou precisava
deles.
E precisavam, além das terras,
entender o que estava acontecendo, não poderiam os deuses ser tão injustos? O que teriam feito para merecer tamanha desgraça?
Necessitavam agora de novas
curas para novas doenças, de novos espaços para novas atividades, de novo
vocabulário, de um novo deus que lhes substituíssem os seus deuses. Mas nada
era mais necessário que a velha vontade de reagir.
E reagiram.
Em meio a
tantas necessidades, necessitou-se aprender erroneamente o conceito de justiça,
não essa justiça da qual falamos hoje, mas a justiça que dava nome às guerras
justas. E então, seria melhor não ser justos. E não foram.
Já dotados de alma e palavras, os
índios precisavam também de um ofício, e não faltou quem viesse ensinar; os
portugueses se achavam bons professores, mas perceberam tarde demais que
erraram no método. Diziam que os índios eram preguiçosos, indolentes, e até
agressivos, mas eles só estavam praticando a lição de casa. Os jesuítas viriam
corrigir a tarefa, mas como os índios não correspondiam à metodologia daquela escola.
Resolveram então chamá-los de incapazes. E assim passaram a “protegê-los” e
“ajudá-los” a se integrar na sociedade. Criaram leis, órgãos, delimitaram as
terras, fizeram de tudo, mas que índios ingratos estes, hein? Não se agradaram. E reagiram.
Não iriam deixar roubar-lhes a
identidade. Não eram portugueses, não queriam ser portugueses; não
eram índios, não queriam ser índios; não tinham alma, não queriam ter alma; não
eram civilizados e não queriam ser civilizados; mas também não eram folclore,
não queriam ser folclore. Eram reais, queriam ser reais, e lutaram por essa
realidade. Queriam cantar, lutar, manifestar-se através da sua língua, seus
costumes, seus deuses. Queriam apenas ser o que eram antes dos intrusos
chegarem.
E regiram.
Hoje, depois de tanto tempo,
tanta luta, me questiono se o mito do bom selvagem ruiu. E o do mau selvagem?
Será que esses preconceitos vão ruir? Ou será que vão continuar nomeando outras
formas de preconceito...
Pergunto-me também se eu conseguiria resistir tanto, se seria
capaz de reagir frente a tão diversas formas de violência. Ainda acho realmente
que existe um mistério que não serei capaz de desmistificar, mas acredito que
venha da terra, não essa terra que vocês marcam e dizem ser de alguém, mas na
terra da qual brota a árvore de tronco forte e que dá o fruto que o alimenta,
vem da terra que sustenta as águas e todos esses prédios grandes e pesados, da
terra que fica embaixo da fogueira e que recebe a chuva que se precipita do
céu, da terra que acolhe qualquer corpo que se estira cansado ao chão, da terra
que é terra não porque a nomearam assim, mas porque a natureza a fez terra, da terra onde eu me ergo e grito e eu sei que a terra me escuta,
da terra que é presença certa em todas as transformações que se dão com o tempo.
Tempo, tempo, tempo, tempo...
Ciclo natural de construção e desconstrução do que é tangível ou imaterial. Sei
que tocou as vozes dos que hora silenciados hoje se fazem ouvir. E sei que
tocou também os ouvidos dos que não quiseram escutar e até mesmo dos que
quiseram silenciar. Muita coisa mudou, mas muita coisa ainda precisa e vai mudar. Talvez eu não esteja lá, mas eu quero ver.
Reajam.