terça-feira, 13 de novembro de 2012

O lençol com listras laranjas.

Não pensei que fosse algum dia sentir uma alegria tão grande ao encontrar na gaveta um lençol com listras laranjas. Lembro da cena da minha mãe dobrando-o para colocá-lo na mala. O seu olhar vacilante fugindo do meu, simulando uma força que nem ela acreditava ter. Sinto o carinho em cada dobra de roupa que eu abro. Apesar de serem roupas antigas (e justamente por isso) é a primeira vez que as uso aqui em Bruxelas. Deixei o Brasil há quase três meses e ainda guardo algumas roupas sem usar só para conservar o cheiro do amaciante e o lugar das dobras.
Quando pequenos, eu e meu irmão tínhamos inúmeras pequenas alergias. Ficamos um bom tempo sem usar cobertores de lã; não podíamos beber leite de gado, chegamos a ter duas cabras no nosso quintal; viajávamos periodicamente para uma cidade maior e tomar vacinas; tinhamos também alergia a frio, a garganta sempre mais sensível acusava logo que algo não ia bem... as febres, os enjoos, a pele empolada, as internações, a minha "quase morte" quando caí de bicicleta embaixo de um caminhão. Lembranças que guardo com carinho só por lembrar o olhar doce da minha mãe a cuidar da gente. Como sou egoísta. Fico feliz ao lembrar das suas olheiras e das noites de sono que perdeu por nossa causa.
Lembro do dia em que meu irmão mentiu, viajou com a namorada e deixou um bilhete avisando que não iria dormir em casa, e só tarde da noite a minha mãe pôde lê-lo. Meu pai estava viajando, então minha mãe pegou um táxi e foi até Lençóis buscar meu irmão que voltou com ela no táxi. Não foi uma viagem curta. Em silêncio. Sem muita briga, sem gritaria, sem ressentimentos. Parecia ter passado em branco não fosse a resposta que ela deu ao meu irmão no natal quando ele pediu uma guitarra de presente: - "O dinheiro da guitarra eu gastei com o táxi quando fui te buscar em Lençóis no dia em que você viajou escondido. Isso não se faz." Sempre admirei esse jeito dela nos educar, o seu silêncio dizia mais que qualquer palavra e soava mais alto que qualquer grito.
Lembro do dia em que meu primo-irmão pegou o carro escondido para dar cavalo de pau e bateu o carro colocando-o entre um muro e uma árvore. Perda total, sem seguro, o carro foi direto para o lixão e vendido como sucata. A resposta: "ainda bem que ninguém se machucou, você não deveria ter pego o carro escondido". Ela tinha feito uma cirurgia de varizes e o médico pediu repouso, mas não tínhamos dinheiro para comprar outro carro tão cedo. Cada caminhada até em casa, ao supermercado, não poder viajar nas férias, não houve castigo mais doloroso. Entretanto seu olhar era sempre doce, ela sabia que isso já doía muito na gente, não precisava falar nada além, seria um castigo desnecessário e violento.
Sempre tive muito medo de machucá-la, apesar de ter inveja dos meus irmãos quando os via fazer essas "loucuras" que me instigavam muito.
Vir para a Europa talvez tenha sido a minha maior rebeldia. Vejo isso claramente nas letras do bilhete que encontrei na minha mala, vacilantes, custosas a serem escritas, riscadas com força, como as de um menino que aprende a escrever.
Não, mãe, não deixe morrer um pedaço do seu coração. Infelizmente você fez muitos a sua volta dependentes dele, e eles precisam de um coração inteiro.
Não sei em qual parte do caminho nos perdemos, onde passei a ver suas imperfeições. Você passou a gritar mais, e eu preferia seus tons graves, quase silenciosos. Eu amava mais seu outro silêncio, de compreensão. Talvez eu tenha desaprendido a interpretá-lo. Talvez eu tenha te admirado tanto e me resignado à ideia de não poder/querer ser igual a você, é muita renúncia para uma vida só e eu sou muito egoísta. Talvez eu não queria que um filho escreva algo como isso para mim um dia. E com certeza nunca conseguirei amar alguém como você nos amou. Talvez eu fale isso porque eu ainda não seja mãe. E talvez haja muitos "talvez" em minhas ideias. Mas isso não me incomoda porque sei que você me ama apesar de todas as minhas incertezas e imperfeições. Apesar de não ter encontrado um sabão para lavar as roupas que as deixe com o mesmo cheiro de quando você as lava, apesar de não conseguir dobrar as roupas tão perfeitamente como você as dobra. Apesar de te amar incondicionalmente e não saber como dizer. Apesar de me fazer dura quando você me pede para voltar e eu sorrio como se não houvesse saudade. São pesares tão falsos quanto o nosso silêncio. Os dias em branco, sem a sua voz e o seu cheiro para preenchê-los, seu olhar e até as suas inúmeras reclamações. Desista, eu nunca chegaria aos seus pés. Poderia escrever livros, o equivalente à capacidade da minha memória, e ainda assim não seria capaz de traduzir o que você significa em nossas vidas e o que você é capaz de fazer.
Mas, como você sempre me ensinou a tirar uma lição positiva de tudo, agora pelo menos agora eu entendo o que é um "chagrin": é ficar triste em ter que usar as roupas e vê-las perder o perfume e as dobras da antiga lavagem. Não é uma tristeza, nem chega a ser uma melancolia, é um pequenino pedaço dos dois acompanhado de uma resignação que se assemelha a uma saudade.

Nenhum comentário:

Postar um comentário