quarta-feira, 6 de abril de 2011

Infância em onze atos

I

Sou pequenininha
Da perna grossa,
Vestido curto
Papai gosta não.

Declamava sem rima e as pessoas riam,
Pediam que eu repetisse.
Eu não entendia o porquê,
Apenas gostava e repetia...

II
Comi demais da vida e não podia ser diferente.
Estou suja,
Encardida, como as roupas de renascença esquecidas no guarda-roupa,
Mal apresentável, como os deveres de casa mal apagados.

Devo ter uns quinhentos anos de tanta saudade.
Saudade de não me importar com os padrões,
Muito menos com os patrões,
E menos ainda com o que os outros iriam pensar de mim.

III
No dia das mães escrevia bilhetes dizendo: “te amo”;
No dia dos pais, também.
As letras não eram escritas com a mesma agilidade de hoje,
Mas eram belas, sem contradição, sem ambigüidade, eficazes.

Chegavam a deixar marcas no papel,
Poderiam arrancar várias folhas e saberiam da força daquelas palavras,
Bem coloridas.
Eram o presente mais valioso que eu podia dar.

IV
Andar passando a mão nas paredes...
Querer uma bicicleta nova...
Questionar...
Eu era isso.

Questionava o porquê de não poder ter uma bicicleta nova.
Adorava ter alguém para questionar o porquê de eu não poder ter uma bicicleta nova.
E no fim a bicicleta velha nem era tão velha assim;
E as mangueiras eram tão altas e sedutoras.

V
Jogar bola, brincar de casinha, pular corda, cantar.
Os carros eram de brinquedo,
Os velórios proibidos.
Os batons, de chocolate.

O mal feito, se não descoberto, continuava sendo segredo;
Se conseguisse dormir, a culpa ia embora com o sono.
Era estripulia,
Não covardia.

VI
O quintal sempre teve o mesmo perímetro
Mas era bem maior
Lembro-me de como era grande
A ponto de nele caberem todas as nossas alegrias

Bastava viver
A saúde era um estado de espírito
Não me importava com a osteoporose
Embora me acometessem resfriados, dentes caídos, ossos quebrados...


VII
Papai Noel existia
Fada do dente existia
O anjo da guarda ainda existe
De vez em quando ele aparece

O dente debaixo do travesseiro,
Minha avó trocava por uma moeda.
No natal era a mesma coisa,
Pais e tios faziam um mutirão e enchiam a árvore de presentes.

VIII
Era bom quando a felicidade cabia em mim,
E a culpa não me alcançava.
Era bom não pensar no amanhã,
A não ser que amanhã fôssemos viajar.

Eu era muito veloz,
Corria, andava de bicicleta, pulava alto
E isso me preenchia
Nada me satisfazia mais que as guloseimas da minha avó

IX
Éramos seis, os primos.
Brincando de esperar nossos pais chegarem do trabalho
Mas tínhamos que aprender as regras do clã
E as regras da vida...

Os ensinamentos foram passados num tempo bom,
Mas poderíamos ter demorado mais para aprender.
Embora fosse muito curiosa,
Não sabia, e era bom não saber.

X
Os pelos apontaram junto com a vaidade
Fizeram-me entender a Adão, e muito mais a Eva
Aos poucos fui introjetando o conceito de escolaridade
E perdendo a liberdade para ela

A ignorância tem seus encantos.
Não sabia o que era saudade,
Entendia quase nada da morte,
Mas queria morrer antes do que eu amava.

XI
Sentia-me segura.
Meu pai era o maior homem do mundo.
Minha mãe, a mulher mais inteligente.
Eu, a criança mais feliz.

Fui criança até os catorze
Saí para estudar
Aprendi muitas coisas
Algumas das quais preferiria não saber.

Nenhum comentário:

Postar um comentário