quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Por quê os móveis tem esse nome?

A tarde descia vagabunda como se não tivesse outro destino. E vinha devagar, anunciando a noite serena e comum. Os mendigos começavam a acomodar-se nas calçadas. Voltava da academia cansada, apesar de nem ter feito todos os exercícios (inclusive o aeróbico), mas ao atravessar a rua senti um cheiro de milho cozido e imaginei que não havia muita coisa para comer em casa e teria que preparar algo... Retirei o dinheiro em um caixa 24h que havia ali perto. Por um instante pensei nos hábitos de higiene daquela mulher e, receosa, perguntei quanto era. Respondeu-me ao mesmo tempo em que atendia a uma outra senhora que lhe comprava uma pamonha, desejou-lhe boa noite e agradeceu a Jesus por algo que não me recordo, mas aquilo de certa forma deixou-me mais confortável para comer o milho, ainda que sua higiene não fosse das melhores (pura especulação). Se aquilo foi uma tática de vendas: funcionou. Segui andando e driblando os homens que geralmente estão voltando para suas casas e mechem com todas as mulheres que encontram pelas ruas.

Entrei no supermercado para comprar algumas bobagens, como sempre, a fila demorou infinitamente mais do que demorei a escolher as coisas. A moça do caixa com a mesma cara fechada de todos os dias, as pessoas mórbidas e débeis cumpriam fielmente seu papel de consumidores, inclusive eu. Após o balcão, um senhor, com seus sessenta anos, embalava as compras alheias por conta própria, como no mercado não havia empacotador, apesar de ser um grande empreendimento presente em todo o país. Esse senhor embalava as compras demonstrando cuidado, conversando sozinho e desejando bom dia às pessoas que passavam sem sequer percebê-lo, ou fingindo que não o percebia (não sei o que é pior), pois moedas saltavam no balcam em resposta à “entidade” que conseguia fazer as comprar entrarem sozinhas nas sacolas.

Entrei no meu prédio que ficava ali perto do mercado, na portaria a minha vizinha de andar reclamava algo para o porteiro. Dei boa noite, educada que acho que sou, segui e chamei o elevador. Tomei um banho, li uns e-mails e assistia TV, quando me lembrei de entregar à vizinha uma correspondência que o porteiro deixou por engano no meu apartamento.

Toquei a campainha e mesmo demorando um pouco (isso quer dizer muito) a atender, saiu meio descabelada. Acredito que ela estava tomando banho, senti um cheiro de shampoo. Após os cumprimentos ditados pela lei da boa convivência, entreguei a sua correspondência e ia retornando à minha humilde residência quando me perguntou se a que horas dormia. Pensei que fosse reclamar do barulho que tinha feito no fim de semana porque eu e uns amigos resolvemos fazer uns cachorros-quentes e terminamos a noite tocando violão e cantando na sala, mas às dez horas paramos, por bom senso e medo das reclamações (ainda acho que poderíamos ter ido até mais tarde). Mas, ainda assim achei a pergunta estranha e respondi receosa que dormia às 23h ou 24h e perguntei o porquê da indagação. Parecia com vergonha de perguntar-me, mas estava com plena convicção de que deveria fazê-lo.

Então perguntou-me se durante a madrugada eu não ouvia um barulho de móveis se arrastando e disse que alguns moradores já teriam comentado o mesmo. Respondi que não e realmente nunca tinha ouvido nada. Ela insistiu dizendo que o próprio síndico reclamou com ela e que ela convidou a moradora do andar de baixo do dela a passar uma noite em sua casa para mostrar que o barulho não vinha de lá. Fiquei tentando imaginar o que ela queria com isso e disse-lhe que iria ficar mais atenta e se ouvisse algo diferente comentaria com ela. Entramos num diálogo um pouco irônico e desconfiado:

- Não quero te provocar medo porque acho que temos inteligência o suficiente para escolher no que devemos acreditar. (Falava tentando arrumar o cabelo). Mas acredito que isso seja algo sobrenatural, pois não consigo assimilar a idéia de que moradores de andares tão diferentes e em blocos diferentes ouçam esse barulho e outros não (falou ironicamente). 

- Quem ficaria movendo móveis de lugar para outro em plena madrugada? Provavelmente isso aconteceu porque algumas pessoas mudaram-se daqui semana passada. (Respondi de forma irônica ao perceber que ela desconfiava de mim).

- Acho que não porque venho ouvindo isso desde antes, até então eu não me incomodava, mas, a partir do momento que pensam que sou, eu preciso descobrir quem é ou pelo menos provar que não sou.

- Sei. (Tava explicado, ela precisava colocar a culpa em alguém).

- Pois é, quando eu escutar o barulho de novo vou usar o interfone e chamar para que você venha ouvir. (Sempre com a mão no cabelo e agora com um sorriso cínico. Ela pensava mesmo que era eu, ou pelo menos queria transferir a culpa para mim).

- Tudo bem. (Falei querendo dizer que não. Imaginei-a batendo a minha porta em plena madrugada, mas aceitei porque assim eu estando lá ela me veria e ouviria o barulho ao mesmo tempo, se é que esse barulho existia).

- Pena que você dorme cedo. (Percebeu que eu fiquei chateada com a situação).

- Realmente. E nunca percebi esses ruídos. Se notar te aviso. (O que eu tenho a ver com as alucinações dessa mulher?)

- Tudo bem. (Agora o sorriso era meio retraído como se ao mesmo tempo em que tivesse dado um passo a frente em sua busca e dado um passo atrás em suas possibilidades de colocar a culpa em alguém).

- Isso deve ser coisa de algum sonâmbulo. (Sorri).

- É, mas preste atenção porque assim saberei se você vai poder me ajudar ou se você faz parte do problema. (Risada irônica).

Saí com um sorriso meio sem graça e nos despedimos. Entrei em casa com raiva. Que mulher mais louca, ao invés de ir pentear aquele cabelo fica aí ouvindo móveis. Até me deu uma vontade de arrastá-los essa noite só para vez a confusão. Mas não o fiz.

Esperei ansiosamente a madrugada, mas dormi e não ouvi nada durante a noite a não ser a chuva que caia lá fora lavando a cidade. Lembrei-me do mendigo que se deitou na sacada do caixa eletrônico onde tirei o dinheiro para comprar o milho, à uma hora dessas já estaria todo encharcado e morrendo de frio. Peguei o cobertor mais grosso que tinha no guarda roupa, virei para o lado e voltei a dormir.

Vida ordinária, assim como a vizinha, eu, e os espíritos a arrastarem esses benditos móveis.

Tomara que aquele milho não me faça mal...

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