quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Aulas de matemática.

Do andar de cima da biblioteca o vi dormindo na poltrona do saguão como uma marionete sem o seu manipulador. O pescoço parecia o eixo Y do plano cartesiano, buscava o chão para fincar a cabeça. A vontade que eu tive foi de parar a aula de matemática e ir chorar no banheiro para não fazê-lo na frente da criança.
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Mas o pior momento aconteceu quando ela avistou o pai lá embaixo naquela situação, esperando que a aula acabasse para que pudessem ir embora, e olhou para mim com tristeza, e riu sem graça como se me perguntasse se eu estava vendo.
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- Vamos lá, vamos lá. A prova é amanhã, vamos tentar terminar pra você poder ir embora com o seu pai.
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Fiz o meu papel de “professora” e voltamos às tarefas com a intenção de ignorar o que estávamos vivendo. Batalha de Dom Quixote: ela não se concentrava. “1 X 1 = 2”, “3/2” divididos por “4/5” nunca se aproximavam de “15/8”, a simplificação era uma tortura, as equações então, nem se fala, o “X” virava “%#X*!&”, e o pior é que eu sabia que ela sabia aquilo tudo. Já tínhamos feito exercícios bem mais difíceis outras vezes.
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Confesso que eu estava mais ansiosa para aquela aula acabar do que a própria criança. Não duvidava da minha capacidade de “ensinar”, muito menos da inteligência do aprendiz, mesmo se tratando das arbitrariedades da matemática. Mas o que mais me doía era saber ser praticamente impossível aquela cabecinha se concentrar em números quando a mãe estava doente em outro país.
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Mas eu não podia desistir, o apelo daquele pai, agora pai-mãe, me pedindo para ajudá-lo com a filha para que ela não perdesse o ano me trouxe um compromisso que fiz questão de cumprir. Moribundo, cansado, triste, arrasado, no entanto, dedicado, esperançoso, responsável. Como o admirei naquele momento!
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Fiz todo esforço que pude para ajudar. Fizemos mais alguns exercícios, corrigi algumas outras questões, tiramos algumas dúvidas e encerramos mais de uma hora depois do previsto. O rendimento estava péssimo e, pra piorar, por conta do atraso, a aula de teatro já era. E parece que ela não se importou muito. Na verdade, com a confusão que deve estar na cabeça não devem ter outras coisas que importem tanto quando a saúde da mãe e a idéia de ter que mudar de país de novo.
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Descemos as escadas comentando que era preciso mais concentração e organização, os espaços oferecidos para resolver as questões eram muito pequenos, principalmente para uma criança ainda não tão limitada quanto os adultos. Lá embaixo repeti o mesmo discurso para o pai e desejei boa prova.
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Seguimos juntos até a parte em que o caminho bifurcava para os nossos destinos tão diferentes, mas com o pensamento na mesma pessoa. Para eles uma mãe, uma esposa, para mim uma amiga.
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No dia seguinte a ligação esperada. Ela não tinha ido muito bem na prova. "Precisaremos de mais encontros", disse-me o pai. Isso eu já imaginava e expliquei mais uma vez: ela sabe o assunto, mas está desestimulada, desconcentrada, errando coisas simples que já fizemos uma centena de vezes. A cabeça dela deve estar um turbilhão, é preciso ter paciência.
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Do outro lado da linha o desabafo daquele pai me dilacerava em pedaços cada vez menores e que pareciam se afastar dificultando um reagrupamento que permitisse uma estabilidade mínima para organizar uma resposta. Senti-me impotente diante da dor que também sentia, mas no caso dele elevada a uma potência bem maior.
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Além do medo da filha perder de ano num contexto tão turbulento, da tristeza de estar longe da mulher que ama, e de ter que exercer as funções suas e dela, da probabilidade de ter que mudar de país de novo, e de todas as incertezas decorrentes disso tudo, somavam-se os recém conhecidos problemas burocráticos envolvendo a viagem que iriam enfrentar em breve: necessidade de uma autorização que custaria mais de 500 km viajados até a embaixada brasileira, por uma pessoa recém operada, para que ele pudesse viajar com os próprios filhos.
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Não hesitei e, com o mínimo que pude, prontamente me dispus a ajudar uma, duas, três, quantas vezes fosse preciso. É claro que torcendo para que não fossem tantas, primeiro, pelo motivo óbvio da vontade de não precisarem mais de “aulas de reforço”, e agora pela tristeza que sentia e ainda não conseguia controlar diante da situação.
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Queria retribuir de alguma forma todo o carinho que eles tinham por mim, desde o pequenininho, fazendo questão de passear no meu colo pelas ruas do centro histórico, ou segurando a minha mão ao sair do teatro, ou me pedindo para tocar para que ele pudesse dançar, ou me contando de como ele jogava bem capoeira e futebol; à minha “aluna” adolescente tagarela que me chamava de chata, e queria falar sobre tudo, e dizia que eu era má por fazê-la fazer cada vez mais exercícios e não dar as respostas com a moleza que ela queria, mas me ligava contente no dia seguinte dizendo que tinha tirado a maior nota da sala, radiante, agradecida, e me chamando de cdf; ao pai que ligava agradecendo e marcando as “novas” aulas porque a primeira prova da unidade nunca era boa o suficiente para dar-lhe segurança, ou quando me convidava para almoçar; à minha colega que me acolheu como mãe, me aconselhava, e me acompanhava nos trabalhos da faculdade, e ria das minhas presepadas, e agora, em outro país, numa situação tão delicada, ainda encontra tempo para me dizer que sente saudades.
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Amiga, sinto sua falta! Estou triste. Não esperava que essas férias de inverno fossem nos trazer tão ingrata surpresa. Mas te espero com a alegria de quem tem fé e acredita nos bons ventos. Um beijo.
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Com carinho,
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Ana Míria.

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