domingo, 19 de setembro de 2010

Você tem fome de quê?

- Boa noite! Desculpe incomodar, mas eu sou aidético e estou com fome. Aceita uma bijuteria por um ouvido?

Poderia tranquilamente ter sido um alto executivo, um empresário de sucesso, um catedrático, mas me abordou tentando trocar algumas bijuterias por um prato de comida. Extremamente inteligente, articulava bem as idéias, possuía bom vocabulário. Como teria chegado a esse estágio?

Explicou-se dizendo que havia limpado um terreno e em troca recebeu um lugar para construir um quartinho, morava na rua. Disse também que era aidético, que estava fazendo um curso de bijuterias e que havia comprado uma cera para fazer uma depilação e que por isso estava sem dinheiro. Ofereceu-me então uma bijuteria em troca de comida. Disse que eu não precisava dar-lhe o dinheiro, que poderia comprar a comida e entregar a ele, porque estava mesmo era com fome.

Lembro-me de como me abordou. O excesso de zelo, as desculpas por estar incomodando. A sua magreza e a aparência surrada se incumbiam de delegar a ele o papel de coitado.

(“Triste Bahia, ó quão dessemelhante...”)

Dei-lhe o dinheiro.

Ao se despedir perguntei a ele se sabia o que era uma monografia e respondeu que sim. Eu disse que estava fazendo uma e que gostaria de fazer a ele algumas perguntas, e disse que se não quisesse ele não precisava me responder. Pela primeira vez na conversa ele me atropelou balançando a cabeça afirmativamente e disse: sei, você está fazendo uma pesquisa com soropositivos.

Para a sua surpresa respondi que não. Que queria fazer três perguntas. Ele tomou a liberdade de puxar uma cadeira e sentar-se “conosco” (a uma distância que ele considerava não invasiva). Pensei: já deve ter sido entrevistado umas mil vezes por conta do HIV. Perguntei sobre a justiça e prontamente ele me respondeu: NÃO EXISTE! Não existe justiça terrena porque essa você compra...

E seguiu explicando. Perguntei-lhe sobre o direito e com a mesma convicção me respondeu que esses (os direitos) têm que ser batalhados, que por si só não existem, e contou-me que sempre ia dormir na fila do “seguro desemprego” porque só distribuíam cinqüenta senhas e se chegasse lá pela manhã encontraria mais de trezentas pessoas na fila. Sabia que o seguro desemprego era um direito seu, mas, sabia mais ainda como se dava o enfrentamento com a polícia quando esta ia retirá-lo da fila.

Aquilo acabou me chocando e a minha pequenez se contentou com o que ele já havia narrado. Agradecia quando ele me interrompeu pela segunda vez e disse que eu só tinha feito duas perguntas, que faltava a terceira. Espantou-me a atenção dele. E fiz a terceira pergunta; sobre as pessoas que "lhe davam" com o direito: juízes, promotores, professores, estudantes, civis... e respondeu-me: eles abusam, e seguiu falando desse abuso de uma forma leve, sem rancor, mas consciente, falou-me dos salários, mas não questionou a necessidade do judiciário.

Achei que fosse me falar de corrupção, poder, essas coisas que todos falam. Mas preferiu falar sobre a cara de nojo que as pessoas faziam quando ele as abordava na rua de um modo geral. Reclamou que as pessoas não gostam nem de ouvir, disse que já havia sido maltratado ao tentar pegar um ônibus para ir buscar remédio em um hospital distante, e seguiu contando-nos algumas das suas muitas desgraças. Quis interrompê-lo, não por frescura, não pelo nojo do qual ele falava, mas por ele, por sua intimidade, na tentativa de preservá-lo. Eu e minhas perguntas falsamente impessoais e sobrecarregadas de subjetividade fomos o gatilho para disparar naquele homem uma verborréia intensa de quem precisa mais intensamente ainda de um ouvido.

Será que ele contava essas histórias quantas vezes por dia? E no dia seguinte, quantas pessoas se lembrariam dele, da sua história, daquele dia em que foram abordados com a finalidade de trocar uma bijuteria por um prato de comida. Certamente ninguém ou quase ninguém, porque pelo que me relatava, a maioria o ignorava e alguns davam logo o dinheiro para se livrar; outros aceitavam a troca.

O humor do homem começava a me incomodar. Falava de suas desgraças sorrindo, melhor, gargalhando. Sentir-me-ia tranquilamente em um “stand up comedy” se ao invés de estar sentada na calçada de um bar conversando com um mendigo eu estivesse assistindo homens de smoking no teatro.

Numa dessas, ele falou que não podia comer bolacha recheada, mas que estava com fome e ofereceu uma bijuteria por comida na porta de um supermercado e a mulher deu a ele um pacote de bolacha recheada e coca-cola.

- Eu não ia ficar olhando pra eles e dizendo: como vocês ficam bonitinhos aí e eu aqui. Então eu nham, nham, nham, nham... botei pra dentro.

O sotaque afeminado contribuía intencionalmente para o humor da desgraça.

Em pensar que há pouco falava com uma das amigas que estavam na mesa que eu estava pensando em escrever sobre a pedagogia da miséria... (mas isso fica para uma outra conversa).

Como ia me dizendo, não podia comer biscoito recheado. E estava andando pelo corredor da vitória, lugar nobre de Salvador onde não tem banheiros públicos, e segundo ele também não tinha um matinho ou uma construção em que ele pudesse se esconder.

Seguiu andando até onde pôde. Levantou para tornar mais real a sua história e se imitou ao mostrar como andava quando já não agüentava o desastre que se anunciava. Disse que respirou fundo e... Estava cagado no corredor da vitória. Continuou andando. As pessoas passavam rapidamente, mudavam de calçada, entre outras coisas. A uma senhora que suportou ou não percebeu o cheiro pediu um lençol e ela perguntou pra quê.

- Preciso me esconder de mim mesmo. (gargalhadas solitárias e constrangimento geral).

A essa altura do campeonato eu achei que não ficaria mais constrangida, mas ele ainda não tinha acabado. Seguiu sua narrativa. Andando cagado até o Campo Grande, onde encontrou um banheiro público. Ao se aproximar uma senhora alertou-o que nos banheiros estavam pessoas usando drogas. Gritou: “que merda!” Logo em seguida, sentiu os policiais se aproximarem e perguntando agressivamente: “que merda o quê, rapaz?” Respondeu se esquivando e com voz mansa: “merda que tá saindo dentro de mim, não ta sentindo o cheiro não?” (teria sido o momento de catarse no teatro e parece que ele sabia disso, deu a pausa para o público terminar o riso).

Voltou para a narrativa falando de como conseguiu pegar água no chafariz da praça e se banhar dentro daquele banheiro. Disse que jogou a roupa fora e que tinha outra na mochila e que seguiu. Como mora na rua, não fez muita diferença não ter dito para onde.

Ríamos sem graça para não deixar ele sem graça. Não sei se foi a melhor opção, mas foi o que aconteceu. Aproveitei a pausa do riso e agradeci as respostas. Ele agradeceu também. Ainda recebi um elogio. Disse que eu parecia uma conhecida dele que havia sido miss em alguma cidade dessas do interior e que ela tinha se classificado em terceiro lugar como miss Bahia. Ele queria conversar mais, e acho que se déssemos trela estaríamos lá até agora.

Saiu...

Com algum tempo também saímos e qual foi a surpresa encontrarmos ele no caminho de novo. Perguntei se tinha comido; com o mesmo humor, ele disse que sim e que ainda tinha lhe sobrado algum dinheiro para tomar café no outro dia. Levantou-se do banco e veio em nossa direção. Disse que estava indo para a fila do seguro desemprego e que se nós conhecêssemos alguém que precisasse desse serviço, que ele cobrava vinte reais. Disse que as pessoas cobravam quarenta, até cinqüenta, mas que ele só cobrava vinte.

Minhas amigas e eu nos olhamos com a cumplicidade de quem queria poder “indicar algum cliente”, mas sem conhecer “nenhum” respondemos quase em coro que se soubéssemos de alguém falaríamos. Pura hipocrisia. Respondemos mecanicamente a um alguém que nunca vimos, num lugar que não freqüentamos, e sem pretensões de volta. Aposto que ninguém pensou em ir à fila do seguro desemprego encontrar com ele para fazer essa indicação.

Desejamos sorte um ao outro. E nos despedimos com alegria, estranha alegria.

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